De 1959 a 69, o balé azul da Universidad de Chile

Os anos 1950 consolidaram uma alcunha famosa no mundo do futebol. “Balé Azul” definia um estilo de jogo sutil e, ao mesmo tempo, arrebatador; expressava a técnica do bogotano Millonarios. Porém, antes do fim da década, o futebol colombiano se reformularia e os albiazules perderiam o encanto. Chegava a hora de outra equipe assumir a mencionada alcunha. A sudoeste do continente americano, um grupo jovem se incumbiria da missão. A até então pouco vitoriosa Universidad de Chile começava a dançar à sua maneira.

Universidad de Chile 1959
Foto: La Historia de los Campeones: 1933-1987/ Arte: O Futebólogo


Ensinar, ensinar e ensinar


Há um quê de conto na forma como a história de sucesso de La U se desenrola. Conta-se que, após mais uma derrota, dois amigos egressos da Escola de Medicina da Universidad de Chile, e conselheiros do clube, debatiam a má forma de seu time. Eram eles Víctor Sierra Somerville e Arturo Besoain. Em 1952, o primeiro assumiria a presidência dos Azules.

O clube de futebol nada mais era do que um braço da universidade, não contava, portanto, com robusto aporte financeiro. Já naquela época, beirava o impossível montar equipes vencedoras sem investir pelo menos um pouco. Contudo, o caminho mais exequível seria o escolhido pela direção, entre erros e acertos. Formar bons jogadores não era tarefa fácil, mas era possível e mais barata do que contratar figuras consagradas, o que, por outro lado, era inverossímil.

A trajetória percorrida pelos jogadores era bem definida. Entre os 12 e os 21 anos, havia sete categorias, até a ascensão definitiva ao quadro profissional. Estar no meio universitário proporcionava algumas vantagens em relação aos rivais. Entre elas, o fato de os jogadores serem cuidados em todas as suas facetas — físicas, técnicas, emocionais, culturais e mentais. O clube contava com um departamento de bem-estar, liderado por Fresia Rubilar.

Universidad de Chile
Foto: Universidad de Chile/Arte: O Futebólogo

Já o recrutamento de atletas se dava em diversos estágios. Alguns deles até mesmo ingressavam na universidade e, por oportunidade, praticavam o futebol.

O time precisava vencer, mas sem perder seus valores e missão. Víctor Sierra tinha claro que a formação deveria se pautar em cinco pontos: 1) a qualidade dos professores, pedagogicamente preparados; 2) a preocupação com a condição socioeconômica dos jovens e de suas famílias; 3) o acompanhamento médico constante; 4) controle do desenvolvimento psicológico; e 5) obrigatoriedade de que os cadetes estivessem matriculados em alguma instituição de ensino, com notas aceitáveis. Avaliações ruins acarretavam suspensões.

“A Universidad de Chile não podia ser uma compradora e vendedora de jogadores. Educaria futebolistas, oferecendo-lhes assistência social, médica, dental. Possuía recursos técnicos e materiais. Preocupação pelos garotos além do campo, além dos treinamentos”, pontuou Edgardo Marin, no livro La Historia de los Campeones: 1933-1987.

Foi nessa época que, além de outros profissionais, ascendeu o treinador Luis Álamos. El Zorro era um professor de educação física que representara La U entre 1945 e 52 — atacante convertido em zagueiro. Desde então, notava-se o desejo de ele se envolver o máximo possível com o clube. Foi assim que assumiu, concomitantemente à carreira de atleta, a missão de comandar o time infantil.

Luis Álamos Universidad de Chile
Foto: Conmebol/Arte: O Futebólogo

“Luis Álamos, por trajetória e convicções, era o homem ideal para encabeçar um projeto tão ambicioso. Em 1956, o clube resolveu [...] que seu trabalho técnico englobaria todas as divisões. Isso implicava treinar o time principal”, prosseguiu Marin. A bem da verdade, Álamos já passara rapidamente pelo time principal em 1954, ajudando-o a evitar o rebaixamento.

Acostumar-se a vencer


O trabalho empreendido projetou uma série de jogadores que seriam cruciais para a história de La U e do futebol chileno. Gente como Luis Eyzaguirre, Carlos Contreras, Sergio Navarro, e os indiscutíveis atacantes Carlos Campos (defensor convertido) e Leonel Sánchez, cujo ímpeto próprio da juventude era equilibrado pela presença de veteranos como Braulio Musso e Jaime Ramírez, já profissionais quando as mudanças de direção nas categorias de base foram colocadas em marcha.

Todos esses nomes eram velhos conhecidos de Álamos. Uns poucos haviam dividido espaço nos gramados com ele; a maioria se submetera às suas ordens nos escalões inferiores. A primeira demonstração de força da equipe viria no Campeonato Chileno de 1957. Os Azules terminaram com o vice-campeonato, três pontos atrás do Audax Italiano. Naquela oportunidade, La U chegou a vencer os campeões por 4 a 0.

No ano seguinte, 1958, outra vez a Universidad de Chile somou 31 pontos, três a menos do que o vencedor, agora o Santiago Wanderers. No entanto, em uma competição muito mais equilibrada, terminou em quinto lugar. O momento de triunfar se aproximava. Aconteceria da forma mais gostosa possível: batendo o principal rival, Colo-Colo. Ainda assim, os objetivos da agremiação eram mais modestos.

Talentos Universidad de Chile
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

“A busca do título não era determinante. Não era o objetivo. O que a Universidad de Chile quer no início de 1959 é rondar os 30 pontos e estar, sem sobressaltos, entre os melhores [...] Está formando gente em casa há tempos e vai insistir nela. Apenas Ernesto Álvarez chega de fora para se incorporar ao plantel”, relatou Marin.

O início da campanha beirou a perfeição, com seis rodadas de invencibilidade, cinco vitórias e um empate. Haveria instabilidade a seguir, mas a fibra da equipe nunca foi colocada em causa. Tanto no dérbi contra a Universidad Católica quanto diante do Colo-Colo, La U buscou empates heroicos, depois de estar perdendo por dois gols de desvantagem. O time recuperaria a forma na parte final do certame e acabaria com o primeiro título desde 1940, batendo justamente o Colo-Colo, 2 a 1. Com 21 gols, Leonel Sánchez seria o vice-artilheiro da competição.

La Nación Universidad de Chile 1959
Reprodução: La Nación

“Nas sequências ruins, sentiu-se mais a influência bondosa e paternal de Lucho Alámos, que era um prolongamento da diretoria de La U. Nada de explosões, de recriminações e caras fechadas, muito menos castigos e sanções”, pontuou Musso, que na altura era o capitão da equipe.

Aquele ainda era um time jovem demais e, como era de se esperar, oscilou. Em 1960, terminou com a terceira posição. No ano seguinte, ficou com a mesma pontuação da Católica, tendo feito um primeiro turno invicto. Foram convocados dois jogos decisivos para definir o campeão, ambos disputados no Estádio Nacional, já em janeiro de 1962. O time não tinha Sánchez e, na primeira partida, também não contou com Campos, artilheiro daquela edição, com 24 gols. Depois de um empate por 1 a 1, perdeu por 3 a 2.

Amadurecimento


1962 não seria um ano qualquer para os Azules. Entre 30 de maio e 17 de junho, foi disputada a sétima Copa do Mundo, sediada no Chile. Aquela seria a melhor participação de La Roja na história dos Mundiais, com o terceiro lugar. A influência da Universidad de Chile seria imensa.

Dos 22 convocados pelo treinador Fernando Riera, oito seriam cedidos por La U — Eyzaguirre, Navarro (o capitão), Contreras, Ramírez, Sánchez, Musso, Campos e Manuel Astorga, seis deles com 26 anos ou menos. O trabalho empreendido pelo clube formava não apenas ídolos do clube, mas também da nação. Estava na hora de o balé azul se confirmar uma tendência, não apenas um sonho de uma noite de verão.

Leonel Sánchez 1962 Chile
Foto: PA/Arte: O Futebólogo

É bem verdade que o sucesso mundialista custou caro para a Universidad de Chile. Cansados, os jogadores tiveram desempenho pífio na primeira parte do Campeonato Chileno. Foram apenas seis vitórias nos 17 jogos. O time chegou a ocupar a 11ª posição, em dada altura. Apesar disso, Álamos não deu nada por perdido. No início do segundo turno, com uma confiança surpreendente, afirmou que se iniciava ali um novo campeonato para seus comandados. Dito e feito.

Resultados como um triunfo por 6 a 3, ante o Colo-Colo, ou uma marcante goleada de 4 a 1, contra a Católica não deixavam dúvidas: La U estava de volta. No fim das contas, os Azules alcançaram a Universidad Católica, empatando no topo da tabela — 50 pontos para cada. Evidenciando o poderio ofensivo do time de Álamos estava um impressionante recorde ofensivo de 100 gols, em 34 encontros. O time faria a maior goleada de sua história (9 a 1 no Magallanes) e Campos voltaria a liderar a artilharia, agora com 34 tentos.

Porém, o empate forçava o enfrentamento de mais um tira-teima. Dessa vez, a decisão se deu em jogo único. Já era março de 1963, quando 74.163 espectadores acompanharam o recital de Campos, Sánchez e Álvarez: 5 a 3. Era impossível colocar em dúvida a qualidade e o caráter daquela equipe. Além de tudo, o grupo se unia ao redor de uma grande amizade. Maiores artífices do time no período, Campos e Sánchez eram exemplo disso.


“Eu vim para La U com 11 anos [...] a partir daí, me juntei ao Carlos Campos nos treinos. Ficamos grandes amigos”, relatou Sánchez, ao portal PAUTA.

Não por acaso, em fevereiro de 1963, a revista Estadio afirmaria, convicta: “La U é a melhor equipe que jamais existiu no futebol chileno”. Outra confirmação disso viria de um amistoso contra o Santos. Pelé fez dois, Coutinho um. No entanto, Campos, Alfonso Sepúlveda, Musso e Sánchez deram a vitória aos chilenos: 4 a 3.


A vitória como consequência


Com pequenas mudanças, o time chileno foi mantendo a forma nos anos que se seguiram. Depois de perder o torneio de 1963 por um ponto, vendo outra vez o Colo-Colo subir ao lugar mais alto do pódio, La U recolocou as coisas nos seus lugares, confirmando-se o melhor time em atividade no país. Com uma vantagem colossal de nove pontos, alcançou uma nova conquista em 1964.

“La U cumpria, simplesmente, o desenvolvimento de um plano desenhado dez anos antes. Colhia. A colheita podia ser um ano melhor que outro — nunca ficando abaixo do terceiro lugar — sem necessidade de se reprogramar a cada temporada [...] Só uma incorporação aconteceu para o campeonato: a de Adolfo Olivares, que chegava desde o Ferrobadminton para satisfazer a inquietação permanente de Álamos em busca de um centroavante que pudesse substituir Carlos Campos”, explicou Marin.

Universidad de Chile 1964
Foto: La Historia de los Campeones: 1933-1987/ Arte: O Futebólogo

Além da vitória nacional, o time também se destacou no exterior. Foi campeão invicto de um Pentagonal com Nacional, Flamengo, Racing Club e Colo Colo. Em outra ocasião, foi vice de um quadrangular ante Palmeiras, Independiente e Universidad Católica. Contra o Stoke City, da elite inglesa, empatou. Bateu ainda Huracán e River Plate.

Álamos deixava claro o estágio avançado de evolução em que seu time se encontrava: “La U realiza uma marcação mista. Para isso, conta com jogadores fortes e velozes. [Hugo] Villanueva, por exemplo, tem capacidade para anular qualquer ponta do campeonato. Em geral, utilizamos um 4-2-4 elástico, que às vezes transformamos em marcação individual”.

1965 seria quase um replay do ano anterior. Outra vez, no duelo universitário, os Azules se superiorizaram à Católica, com seis pontos de vantagem. Contudo, os processos estavam próximos de uma mudança de rota. Em mais um ano mundialista, Álamos comandou La Roja na viagem à Inglaterra. 10 selecionáveis vinham de La U.


A campanha da seleção foi péssima. E, sem os convocados, La U atuou em diversas rodadas com reservas e sem treinador. O resultado foi um merecido quarto lugar. Neste turno, foi o trabalho de longo prazo da Católica que rendeu seus frutos. Era a hora d’El Zorro partir. Alejandro Scopelli, um dos mestres de Álamos nos anos 1950, reassumiu o time em 1967. Assim, os Azules retomaram as rédeas do futebol nacional. Impiedosamente, somaram 12 pontos a mais do que a Católica.

O time chegava ao seu ocaso. Em 1969, sob a batuta de Ulises Ramos, outro egresso do time dos anos 1940 e 50, aquela geração daria os últimos suspiros, levando a equipe ao sétimo título nacional. Os anos 1970 estavam a caminho e, com eles, um início de crise que ganharia ares de agonia na década de 1980.

Carlos Campos Universidad de Chile
Foto: Revista Estadio/Arte: O Futebólogo


A Copa Libertadores foi o único ponto de interrogação


A única vírgula durante o período de dominância nacional da Universidad de Chile foi o desempenho pífio na Copa Libertadores da América. Por mais que os jogadores mostrassem qualidade no mais alto nível, tanto na Copa do Mundo quanto em competições amistosas, quando buscavam a Glória Eterna, fracassavam. Era como se as pernas fraquejassem.

Em 1960, o Millonarios se recusou a passar o título de “Balé Azul” adiante. Ainda que não fosse mais o time de Adolfo Pedernera e Alfredo Di Stéfano, trucidou os chilenos, com um placar agregado de 7 a 0. Eliminação imediata na primeira fase. Três anos depois, La U terminou na última posição do Grupo 3, atrás de Boca Juniors e Olimpia. Em 1965, não sobreviveria no Grupo 2, ante Santos e Universitario.

A situação era tão constrangedora que, em 1966, quando passaram a se classificar mais times, a Universidad de Chile terminou na última posição do Grupo 2, vendo a Católica avançar. Os outros times do grupo eram os paraguaios Guaraní e Olimpia. Coisa semelhante se passaria em 1968. Novamente, a Católica passaria e La U ficaria em último, agora enfrentando também os equatorianos Emelec e El Nacional.


A única vez em que o time avançou foi em 1970. Ficou em segundo lugar em um grupo inchado que incluía Guaraní, Olimpia, seu compatriota Rangers e os colombianos Deportivo e América de Cali. O time iria adiante, eliminando o Nacional, em três jogos. Contudo, nas semifinais, cairia diante do outro gigante uruguaio, Peñarol.

Em linhas gerais, as aparições internacionais da Universidad de Chile foram absolutamente frustrantes. Não condiziam com a história construída pelo clube em solo nacional. O país demoraria ainda mais de 20 anos para ver seu primeiro, e único, título continental. Coube ao Colo-Colo, em 1991, alcançar a láurea. Na altura, Álamos, talvez o maior responsável individual daquele empreendimento coletivo, já falecera. Em 1983, complicações de um diabetes foram fatais. Tinha apenas 59 anos.

As marcas que a Universidad de Chile construiu entre os anos 1950 e 60, entretanto, não se apagam. Não apenas pelo futebol jogado e os títulos conquistados. O encanto produzido e a contribuição para o sucesso chileno no Mundial de 1962 ajudaram a alavancar a popularidade do esporte no país. As médias de público escalaram como nunca antes. Tudo isso construído com uma visão clara, valores definidos e o entendimento irredutível de que o melhor time só poderia surgir do melhor grupo de pessoas.

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