Em 1963, a Bolívia viveu seu auge e conquistou a América

Como de costume, na disputa do Campeonato Sul-Americano de 1959, sediado na Argentina, a Bolívia terminou em último lugar. O fracasso na competição era uma constante para La Verde. Um quarto lugar dez anos antes representava, de longe, o ápice para o país andino. Pouco, muito pouco. Em 1963, quando despontou como sede da competição pela primeira vez, sabia que teria que explorar todas as vantagens que estivessem ao seu dispor. A mais famosa delas, o ar rarefeito de La Paz e Cochabamba.

Bolivia 1963 Campeonato Sul-Americano Copa América
Foto: Deporte Total/Arte: O Futebólogo


Política em campo


A Bolívia se preparou para receber seus vizinhos. O estádio Hernando Siles, em La Paz, foi remodelado para a disputa da competição. Entre as novidades, passou a contar com refletores, avalizando a disputa de partidas noturnas. O país vivia um período de convulsão, após o sucesso da Revolução de 1952.

Liderada pelo Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), tinha no sufrágio universal, a reforma agrária, o desmonte do exército, a reforma educacional e o controle estatal dos recursos naturais algumas bandeiras. A luta objetivava tomar o poder das mãos das oligarquias tradicionais do país, que concentravam privilégios e mantinham a massa da população não apenas à míngua de recursos, mas à beira da miséria.

Nas palavras de Eric Hobsbawm, n’A Era dos Extremos, “as massas que eles queriam mobilizar [...] não eram as que temiam pelo que poderiam perder, mas sim as que nada tinham a perder”.

Era 13 de abril quando a Folha noticiou: “Triunfou a revolução na Bolívia”. Siles Suazo, o autoproclamado presidente provisório, trazia um discurso apaziguador: “O MNR não estimulará ódio nem rancor. Conduzirá um governo pacífico e respeitará os tratados internacionais e a propriedade privada”. Dali em diante, sob Siles e, mais tarde, Víctor Paz Estenssoro, o país viveria uma breve guinada sócio-econômica, ainda que menos forte do que o discurso revolucionário sugeria e a despeito da adoção de métodos controversos, especialmente para lidar com opositores.


A Bolívia ganhava relevância continental, muito embora, nos idos de 1963, vivesse um período de ruptura, com Siles e Estenssoro em rota de colisão. As consequências disso seriam brutais, mas viriam no trágico ano seguinte, com o Golpe de Estado liderado pelo general René Barrientos. Antes, entretanto, o esporte orgulharia o país, também com alguma controvérsia.

As escolhas de La Paz e Cochabamba como as duas cidades-sede do Campeonato Sul-Americano repercutiram mal. O último campeão, Uruguai, decidiu não se submeter às agruras de atuar sob o ar rarefeito de altitudes de 3.700 e 2.600m acima do nível do mar. A Argentina optou por convocar um time de jovens, enquanto o Brasil levou um grupo alternativo, que tinha jogadores de clubes como Taubaté e Comercial.

A escolha da Canarinho era deliberada, como registraram os jornais da época. “A CBD, é certo, não irá convocar os grandes cartazes do nosso futebol e muito menos elementos de clubes que estarão intervindo no Torneio Rio-São Paulo”, revelou a Folha.

Pior foi a situação do Chile, que não foi convidado. A justificativa foi a disputa entre os países com relação ao Rio Lauca, que os chilenos desejavam desviar para atender demandas agrícolas. De toda forma, a Bolívia entrava em cena para apagar seu passado de sucessivos fracassos.

No comando, uma lenda do Vasco da Gama


Para liderar a Bolívia em sua missão de renascimento, as lideranças de La Verde procuraram aprender com quem vinha de seguidos triunfos, o Brasil. Porém, o antigo centromédio Danilo Alvim era uma lenda dos gramados, não do comando técnico. O Príncipe se notabilizou pela longa passagem pelo Vasco da Gama, tendo sido um dos artífices do esquadrão cruzmaltino que ficou conhecido como Expresso da Vitória. Em 1950, foi titular no Maracanazo. Mas, como treinador, não tinha experiência alguma.

Após o encerramento da carreira, em 1956, recebeu sua primeira chance. O mesmo Uberaba que representou até pendurar as chuteiras lhe permitiu a transição. Não havia dúvidas, era um vitorioso — para tal constatação, bastaria a lembrança de que, aos 19 anos, sofreu um atropelamento, fraturou a perna em 39 lugares distintos e, mesmo assim, voltou ao esporte. O fato é que não entregou os frutos esperados e, desde 1957, Danilo pouco trabalhou. Na altura da procura boliviana, encontrava-se no comando do São Cristóvão. A missão andina começaria, efetivamente, em 2 de novembro de 1962.

Danilo Alvim Vasco
Foto: O Cruzeiro/Arte: O Futebólogo

Havia respeito pelo passado de Danilo. “A Bolívia está disposta a fazer boa figura, tanto assim que para técnico de sua seleção veio buscar, no Brasil, Danilo Alvim, antigo craque do Vasco da Gama, que em suas funções é auxiliado pelo preparador físico José Vilaco. Ambos estão em intensa atividade há alguns meses e, no momento, realizam jogos-treinos no interior da Bolívia, principalmente nos centros mineiros”, narrou a Folha.

Porém, dúvidas não tardaram a se instalar, após a participação em mais uma edição da Copa La Paz del Chaco, no Paraguai. A competição amistosa era disputada entre andinos e guaranis todos os anos, com os vizinhos se alternando como sede. Era fevereiro de 1963 e faltava menos de um mês para o início do Campeonato Sul-Americano. O resultado? Dois triunfos inquestionáveis da Albirroja, 3 a 0 e 5 a 1.

A pressão sofrida pelo treinador era imensa. No entanto, não havia tempo para mudar. E, diferentemente do que ocorrera no Paraguai, quando Danilo buscou fazer testes com atletas e formações, a Bolívia teria na altitude uma preciosa aliada.

Não faltaram gols


A corrida boliviana começou em 10 de março, na capital executiva, La Paz. Iniciar a disputa na maior das altitudes, cerca de 3.700m acima do nível do mar, parecia ideal para um elenco de pouca experiência internacional.

Exceto pelo jovem Ramiro Blacut e o capitão Wilfredo Camacho, que à época atuavam no argentino Ferro Carril Oeste, todos os demais representavam quadros nacionais. Sem surpresa, a base vinha de Jorge Wilstermann e Deportivo Municipal, os últimos campeões e primeiros representantes bolivianos na Copa Libertadores da América. 

Danilo promoveu uma mescla. Ao mesmo tempo em que contava com figuras da experiência de Víctor Ugarte, que aos 36 anos era ídolo do Bolívar e tinha passagem por San Lorenzo e Once Caldas, apostava na juventude do citado Blacut, de 19.

Víctor Ugarte Bolivia
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

No entanto, a estreia na altitude seria contra a única equipe possivelmente imune às consequências do ar rarefeito. Ainda que o grupo equatoriano fosse formado majoritariamente por jogadores de Barcelona, Emelec e Everest, equipes de Guayaquil, que fica ao nível do mar, o campeonato local frequentemente obrigava os clubes a atuar em Quito, na altitude de 2.900m.

O empate não chegou a surpreender, embora o placar elástico chame a atenção: 4 a 4. O relato da partida, no entanto, foi taxativo ao afirmar a influência da altitude, dado que o Equador chegou a liderar o placar por 4 a 2. “Os equatorianos tinham chegado no dia anterior e aí entrou em cena a altitude [...] Os bolivianos tentaram jogar dentro do 4-2-4, imposto pelo técnico brasileiro Danilo Alvim, mas atrapalharam-se e acabaram no 4-4-2”, reportou o Jornal do Brasil. Não era uma estreia promissora.

A competição era disputada em pontos corridos e turno único. Faltavam cinco partidas. Uma semana mais tarde, em Cochabamba, a Bolívia recebeu a Colômbia. Que saiu na frente. Máximo Alcócer resgatou La Verde, com um doblete: 2 a 1. Era a primeira vitória dos anfitriões sob a batuta de Danilo. Quatro dias depois, na volta a La Paz, a história não seria mais tranquila, mas ainda assim triunfal: 3 a 2, diante do Peru.

Bolívia 1963 Copa América
Foto: HFB/Arte: O Futebólogo

O jogo seguinte era crucial para as pretensões bolivianas. O rival Paraguai estava no caminho e vinha de sucessivos êxitos, contra Equador, Brasil e Colômbia. Vencer significava assumir a liderança, já que os adversários eram os únicos invictos na altura. Para alguma coisa, as derrotas na Copa La Paz del Chaco parecem ter servido. Em Cochabamba, os guaranis não tiveram vez: 2 a 0.

“Danilo Alvim disse que seu sonho dourado é ver a Bolívia decidir o título com o Brasil, na final, pois aí se considerará um profissional realizado. Danilo disse que as vitórias da Bolívia devem-se, principalmente, ao coração que cada jogador emprega nas partidas”, pontuou o Jornal do Brasil.

Emoção contra o Brasil


Foi aos 43 minutos do segundo tempo que La Verde bateu a Argentina. Os donos da casa estiveram em vantagem duas vezes, mas a contenda se encaminhava para uma igualdade por 2 a 2. Depois de Edgardo El Gato Andrada salvar a Albiceleste defendendo um pênalti, coube ao capitão Camacho arregaçar as mangas e confirmar a vitória dos locais, a quarta. Faltava um degrau, apenas.

O Paraguai seguia no encalço boliviano, tendo se recuperado ao vencer o Peru. Tinha pelo caminho a Argentina, mas o quadro liderado por Danilo dependia apenas das próprias forças para levantar a taça.

Foi uma trocação absurda. Brasil e Bolívia se atacaram sem dó. Um placar como o que se viu não pode ser construído de outro modo. No final, prevaleceu quem jogou mais. “A Bolívia reeditou suas últimas jornadas, conseguindo impor seu maior volume de jogo [...] O conjunto local durante todo o transcorrer da partida foi superior ao brasileiro não obstante estivesse durante boa parte do primeiro tempo inferior no placar”, esclareceu a Folha. Em Cochabamba, Bolívia 5, Brasil 4.

Bolívia 5-4 Brasil Folha de São Paulo
Acervo: Folha de São Paulo


A alegria, contudo, durou pouco. Dois dias depois, o interesse do Botafogo na contratação de Danilo Alvim se materializava. O triunfo continental o colocara em alta: “A inclusão de novos jogadores inicialmente omitidos e posteriormente apontados pelos críticos da imprensa, adaptação do quadro à modalidade do jogo 4-2-4 com deslocamentos bastante harmônicos [...] a acertada direção técnica, a preparação e uma boa dose de amor próprio, entusiasmo e luta, foram os fatores que determinaram a vitória da Bolívia”, anunciou o periódico paulistano.

10 dias depois do título, Danilo acertava com a Estrela Solitária, ao troco de um milhão e meio de luvas e duzentos mil cruzeiros mensais, por duas temporadas. Ali, com oito jogos apenas, tornou-se, estatisticamente, o treinador com o melhor rendimento da história da Bolívia e o único a conquistar um título de primeira grandeza.

Cerca de um ano e meio depois, o Golpe de Estado se concretizou, devolvendo à Bolívia um cenário caótico. Esportivamente, entretanto, o país deixara de ser lembrado apenas como um saco de pancadas na América do Sul. Ainda que como anfitrião, e mesmo favorecido pela altitude, vencera cinco de um total de seis jogos e tivera desempenho reconhecido internacionalmente. Não se briga com os fatos: a Bolívia fez jus aos festejos do dia 31 de março de 1963.

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