FA Cup de 1973 apresentou o Sunderland do impossível

Na maioria dos anos, o Sunderland foi um time da primeira divisão inglesa. Os Black Cats se tornaram poderosos no nordeste da Inglaterra — mais especificamente em Tyne and Wear. Antes mesmo do descortinar do século XX, o time já era campeão nacional, o que aconteceria mais algumas vezes. Contudo, no final da década de 1950, conheceu as agruras da segundona. Em 1973, a chance de vencer a competição mais antiga da história era um delírio.

Sunderland FA Cup 1973
Foto: Sunderland/Arte: O Futebólogo

Quando venceremos outra vez?


Os anos 1930 foram marcados por glórias para os torcedores do Sunderland. Em 1935-36, o alvirrubro não teve grande oposição para vencer o Campeonato Inglês. Triunfando em 25 de 42 partidas, somou oito pontos a mais do que o vice, Derby County (quando os triunfos ainda conferiam somente dois). Era a consagração do trabalho do treinador escocês Johnny Cochrane, no clube desde 1928.

A missão do comandante seria completada no ano seguinte. No dia 1º de maio de 1937, os homens de Tyne and Wear subiram ao gramado do estádio Wembley para buscar o até então inédito título da FA Cup. Do outro lado da disputa estava o Preston North End, que conhecia o caminho da vitória, alcançada pela primeira vez em 1888-89. O rival inclusive largou na frente. Porém, Bobby Gurney, mais tarde o maior artilheiro da história vermelha e branca com 228 gols, empatou. O capitão Raich Carter virou e o ponta esquerda Eddie Burbanks confirmou o triunfo, 3 a 1.

Foi uma demonstração de superação típica de grandes times. “Quando chega o empate, ele nos pega de surpresa”, escreveu o Sunderland Echo, repercutindo o triunfo. O Preston jogava melhor e foi à luta; pareceu mais perto do triunfo em vários momentos. No fim, contudo, Carter recebeu a taça das mãos da rainha Elizabeth, esposa do rei Jorge VI. “A equipe do Preston fez um canal para Carter subir as escadas do camarote da Família Real”.


Os festejos tomaram as ruas de Londres e, como esperado, as de Sunderland. Mais de 30 mil pessoas receberam seus heróis, que se dirigiram em um primeiro momento ao estádio de Roker Park, construído em 1898. “Os jogadores desaparecem de vista para o vestiário. A multidão acompanha já com saudade. Por mais que torçam e gritem, os jogadores não saem outra vez. Quando os veremos novamente?”, completou a reportagem.

A pergunta que preencheu as páginas finais do caderno esportivo Football Echo, impresso em cor-de-rosa, pode ter tido uma intenção meramente retórica, mas acabou se revelando adequada. Cochrane se tornou o primeiro treinador a conquistar as copas escocesa e inglesa (o segundo seria Sir Alex Ferguson) e se aposentou dois anos depois. 

Exceto por um par de campanhas melhores, os tempos que sucederam a Segunda Guerra foram duros para os Black Cats.

Descaminhos levam Bob Stokoe a Roker Park


Em 1961, o Sunderland andava na segunda divisão inglesa e buscava um artilheiro. O treinador Alan Brown foi ao porto de Southampton buscar seu homem-gol. Ele retornava de uma viagem romântica com a esposa e trazia escrita na sua história uma marca impressionante no comando do ataque do Middlesbrough: 204 gols, em 222 jogos. Mesmo na divisão de acesso, conseguiu ser convocado a representar a Inglaterra. Seu nome? Brian Clough.

“Brown não foi apenas meu treinador, foi meu mentor. Ele não sabia disso na época, é claro, mas estava me ensinando a forma correta de realizar uma tarefa que se apresentaria muito mais rapidamente do que qualquer um imaginaria”, falou Clough, em sua autobiografia. Alan estava na casamata alvirrubra quando, em 1962, o Sunderland recebeu o Bury, lutando para ascender à elite. Um choque com o goleiro rival, Chris Harker, marcaria para sempre a trajetória de Clough.

Zagueiro do adversário, Bob Stokoe não parava de ordenar que o atacante do alvirrubro se levantasse, como se estivesse fazendo cera depois da colisão. Contudo, Clough batera a cabeça no gramado. Sangue escorria pela face suja de barro, mas era o joelho que realmente dizia que algo estava errado; mais especificamente o ligamento cruzado. Ele tinha 28 gols, em 28 partidas. Faria apenas outros 3 jogos pelos Black Cats, mais de um ano depois do incidente. Parou aos 29 anos e começou a carreira icônica como treinador.
Clough Testimonial Sunderland
Foto: Sunderland

Brown ainda liderou o Sunderland por um bom tempo, até novembro de 1972, navegando em meio ao mar calmo e a tormenta, com o acesso em 1963-64 e um novo descenso seis temporadas depois.

Paralelamente aos acontecimentos de Roker Park, um velho conhecido do alvirrubro se desenvolvia como treinador. 

O homem que duvidou da dor de Clough era não apenas um defensor, mas já naquela época exercia concomitantemente as funções de treinador. Tinha tudo para se tornar persona non grata em Sunderland, especialmente por ter se criado no rival Newcastle. Porém, em um desses movimentos futebolísticos que mudam o curso da história, Stokoe substituiu Brown.

Bob Stokoe Sunderland
Foto: Evening Standard/Getty Images/Arte: O Futebólogo

Arrumando a casa


A decisão bilateral pela saída de Brown aconteceu após empate diante do Fulham e, sob a liderança do interino Billy Elliott, as coisas iam mal. Foram duas derrotas e dois empates. A principal missão de Stokoe era evitar o rebaixamento. Ao todo, haviam sido disputadas 18 partidas e o time vencera somente quatro delas; também não estava mais vivo na disputa da Copa da Liga Inglesa, eliminado pelo Stoke City. 

A estreia do novo treinador não foi propriamente animadora — Burnley 1, Sunderland 0. O pão não podia continuar caindo com a manteiga virada para baixo. Não continuou. 

O quadro de Tyne and Wear logo embalou uma sequência de oito jogos sem perder (4V e 4E). Paralelamente, começou sua corrida na FA Cup. O primeiro adversário parecia acessível. O Notts County estava na terceira divisão, mas, como se sabe, as lógicas são frágeis quando vinte e dois jogadores lutam para colocar uma bola no fundo de uma baliza. Foi necessário um replay para os Black Cats avançarem. 

Evening Chronicle Sunderland Notts County 1973
Foto: Evening Chronicle

“Um triunfo para as táticas de Stokoe”, exibiu o Evening Chronicle do dia seguinte. O treinador apostou em uma ideia de jogo defensiva e, conforme o Notts County foi se cansando, o Sunderland cresceu e fez seus dois gols. Com a vantagem assegurada, Stokoe reforçou ainda mais a defesa com a entrada do zagueiro Dave Watson e garantiu o placar.

No período, o time conseguiu um recorde impressionante na disputa segunda divisão. Depois de perder para o Sheffield Wednesday e interromper a excelente sequência que vinha sendo construída, o alvirrubro jogou mais 14 jogos, conseguindo nove vitórias, um empate e perdendo só quatro vezes. Assim, fechou o ano em sexto lugar, a salvo de qualquer perigo e podendo construir um bom futuro.

Aquele homem criado no Newcastle, que viu a sorte do Sunderland escorrer pelos dedos com a lesão crucial de um goleador dos mais prolíficos da história da Inglaterra, e dela duvidou, resolvia com muita eficácia os problemas dos Black Cats.

Replays emocionantes na FA Cup 1973


O crescimento no campeonato nacional permitiu ao Sunderland dividir seu foco. Depois de eliminar o Notts County, a equipe encarou o Reading, à época na quarta divisão. Outra vez, engana-se quem pensou que a diferença de posição na hierarquia do futebol inglês se refletiria em facilidades para os homens liderados por Stokoe. 

Havia um componente emocional em campo. O técnico adversário era Charlie Hurley, que defendeu o Sunderland entre 1957 e 69 e seria, dali a seis anos, no centenário do time, eleito seu jogador do século.

“Fomos sorteados para enfrentar o Sunderland em Roker Park e havia uma massa de torcedores, por todo o campo, gritando ‘Charlie, Charlie’. Foi incrível para os jogadores do Reading. O respeito que recebi deles. Eles achavam que eu estava lhes passando um monte de fanfarronice, mas perceber que o que eu estava dizendo era verdade os emocionou”, comentou o ídolo dos Black Cats, ao portal Roker Report.


A partida de ida terminou 1 a 1 e foi necessário outro replay. “O Sunderland foi a Elm Park na quarta-feira. Tivemos a casa cheia. O Sunderland tinha um time bom: tinham [o ponta esquerda Dennis] Tueart, o pequeno [meia] Bobby Kerr, Dave Watson e sabíamos que teríamos muito trabalho pela frente. Jogamos muito, muito bem durante vinte minutos, mas o Sunderland acabou por vencer por 3 a 1”.

O desafio seguinte parecia duro demais, mas nesta altura já se sabe que só vence quem mostra superioridade no campo. 

Aquele não seria o melhor ano do Manchester City no período, mas os mancunianos vinham de uma sequência de sucessos e ainda contavam com jogadores da estirpe de Joe Corrigan, Tony Book, Colin Bell, Mike Summerbee e Francis Lee. Só que o Sunderland esteve em seu melhor em Maine Road. Os Citizens saíram na frente, tomaram a virada e empataram na fase final da partida.

“O City não comemorou muito. Penso que sabiam que tinham acabado de se livrar da cadeia [...] no nosso vestiário, o sentimento não era de pessimismo, de forma alguma. Não era como se pensássemos que tínhamos dado tudo a perder. Eu sabia que, se jogássemos daquele jeito no Roker Park, avançaríamos. Sem medo”, contou Tueart, também ao Roker Report.

De fato, o Sunderland entrou no replay com valentia e, com 15 minutos de jogo, já vencia. O placar final, 3 a 1, evidenciou que, fosse o que fosse, Stokoe sabia o que estava fazendo. 


O confronto seguinte seria decidido em uma partida apenas. O rival foi o conhecido Luton Town, adversário na segunda divisão, e que, curiosamente, venceu os dois confrontos do campeonato de pontos corridos. Quando era matar ou morrer, contudo, deu Sunderland.

Sonhar com o fim de um jejum de três décadas


Quando se chega às semifinais de uma copa, nem o mais mesquinho e cético dos torcedores, ainda que não admita, deixa de sonhar com uma conquista. Fazia 36 anos desde a última visita do Sunderland a Wembley. Seria, entretanto, preciso sonhar muito ardentemente, porque o adversário da vez era o Arsenal, que lutava pelo título inglês contra o Liverpool.

Os Gunners tinham uma série de jogadores importantes, como Pat Rice, Alan Ball, Peter Storey e Ray Kennedy. Talvez a luta pelo campeonato implicasse em um foco menos intenso na FA Cup, sobretudo porque os londrinos encararam os Black Cats depois de uma derrota para o Derby County, coincidentemente treinado por ninguém menos do que Brian Clough. Terá ele, o ídolo que não permitiram ser, ajudado?

O embate entre Davi e Golias foi disputado em campo neutro, em Sheffield, no conhecido Hillsborough. Em sinal de respeito mútuo, os times abriram mão de seus uniformes principais. O Sunderland entrou em campo de branco; o Arsenal, de amarelo. 


No dia seguinte, a manchete esportiva do Daily Mirror disse, em uma palavra, tudo o que se precisava entender sobre o confronto. “Messias” foi o modo como a publicação se referiu ao treinador Bob Stokoe. O noroeste da Inglaterra teria representação na final; o Sunderland venceu por 2 a 1, diante de mais de 55 mil pessoas.

Depois de eliminar Norwich, Plymouth Argyle, West Bromwich, Derby County e Wolverhampton, o Leeds United, último vice-campeão inglês, aguardava o Sunderland na decisão.

Mirror Sunderland Arsenal 1973 Fa Cup
Foto: Daily Mirror

Oficial: Stokoe é um homem do Sunderland


Stokoe levou o conjunto de Tyne and Wear mais longe do que qualquer um poderia imaginar, meses antes. Mas, o Leeds tinha um timaço, que seria campeão inglês no ano seguinte. O treinador Don Revie apostava suas fichas em jogadores como Norman Hunter, Paul Madeley, Billy Bremner, Johnny Giles e Allan Clarke, todos internacionais por seus países. 

Mais de 100 mil pessoas foram a Wembley ver mais um enfrentamento entre um claro favorito e um azarão.

Do lado do Sunderland, Stokoe escalava alguns dos maiores ícones da história do time. Começando pelo goleiro Jimmy Montgomery, que, ao final da carreira, seria seu recordista de jogos, com 627 aparições. O capitão Kerr, pequenino em estatura (1,64m), vinha sendo um gigante, enquanto alguns de seus compatriotas escoceses, como Billy Hughes, ajudavam a dar consistência ao meio-campo. Na retaguarda, Watson fazia o trabalho sujo e o volante Micky Horswill, de 20 anos, confirmava-se a grande revelação da competição.

O alvirrubro do noroeste estava preparado para fazer história. 


Ian Porterfield fez a primeira parte do serviço, abrindo o placar no primeiro tempo. Coube a Montgomery a segunda, com duas defesas estupendas e em sequência, já na etapa final. “É a imagem que define minha carreira, talvez a minha vida”, comentou Montgomery ao falar de suas paradas ao Daily Mail.

Sunderland 1, Leeds 0. O jejum de 36 anos acabara. Era, ainda, a primeira vez, em 42 temporadas, que um time da segunda divisão vencia a FA Cup. Nêmesis de Don Revie, Brian Clough deve ter esboçado um sorriso naquele 5 de maio de 1973.

Mais de meio século depois da partida, Roker Park não existe mais; foi substituído pelo Stadium of Light. Como um farol, fora da casa nova, está uma estátua construída com fundos angariados junto à comunidade de Sunderland. Ela exibe a imagem de um sorridente Bob Stokoe, falecido em 2004. Permanente, a escultura é uma lembrança da grandeza do Sunderland.

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