Cristiano Lucarelli: Tudo pelo meu país, Livorno

O vermelho livornês não é aquele da bandeira comunista. Poder-se-ia dizer que sequer se trata de vermelho, mas de grená. Porém, essa resposta também não satisfaria um local, já que, na Itália, essa nomenclatura é tradicionalmente associada ao time do Torino. E a Associazione Sportiva Livorno, parte indissociável da identidade desse lugar, não tem nada de Torino, dirá qualquer livornês. O Livorno é o Livorno, e ponto final. Aliás, para dirimir a celeuma, o livornês dirá que se veste de amaranto, a cor que Cristiano Lucarelli aprendeu, desde o berço, a amar; a tonalidade que tinge o sangue que corre em suas veias.

Cristiano Lucarelli Livorno
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Quando Cristiano veio ao mundo, em 1975, seu pai já era um autêntico livornês, frequentador do Stadio Armando Picchi, trabalhador do porto local, e filiado ao PCI, o Partido Comunista Italiano. E não há como se falar na cidade toscana sem mencionar os acontecimentos de 21 de janeiro de 1921. Naquela data, acompanhado de Amadeo Bordiga, o sardo Antonio Gramsci abandonou o Teatro Goldoni, ciente de que começava uma batalha. O homem caminhava carregando um dos títulos de fundador do PCI, após um cisma nascido no seio do Partido Socialista Italiano.

Enquanto se forjavam as bases do fascismo mussolinista, no polo oposto Gramsci e companhia, influenciados por Lênin, profetizavam o marxismo revolucionário como alternativa ao reformismo dos socialistas. Talvez por isso, Livorno, uma cidade notória por seu porto, repleta de estivadores, tenha se revelado o lugar ideal para o PCI ancorar. Lucarelli nasceu em uma dessas muitas famílias livornesas, talhadas para o trabalho e unidas em torno de sua comunidade.

“Mesmo que você não saiba nada de política e seja ainda criança, consegue ver que quase a cidade inteira é de esquerda. Quando eu era pequeno, a população daqui era de portuali [estivadores], e só havia umas cinco ou seis famílias com dinheiro. Sim, é difícil ser livornês e não ser de esquerda”, garantiu Lucarelli, ao livro Futebol à Esquerda.

O bairro de Shanghai não era o lugar mais fácil para uma criança crescer. Conhecido como o mais obreiro de Livorno, era um lugar duro, com recursos limitados, e que fora construído deficitariamente nos anos 1930, numa clássica obra populista do governo fascista. Os pés de seus habitantes não podiam pensar em deixar o chão. Mas, como se diz popularmente, é um local que molda caráter. E nunca se duvidou que a família de Maurizio, o patriarca do clã Lucarelli, o tivesse. Foi lá, na Shanghai livornesa, que floresceu o amor de Cristiano pelo Livorno, que rapidamente passou a frequentar os grupos de ultras do time, bradando aos quatro ventos a Bandiera Rossa, o hino do PCI.

Livorno Città
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Jamais esquecer de onde veio


Contudo, para gozar da vida de atleta, Lucarelli precisou partir. E poucas coisas poderiam ser mais duras para o garoto que vivia profetizando que o time de alguém nascido em Livorno tinha que ser o Livorno. Por mais que admitisse que, dada a pouca competitividade livornesa, seus amigos pudessem nutrir simpatia, ou mesmo torcer, para os gigantes nacionais, acima de tudo Internazionale e Juventus — nunca o Milan, dada sua ligação com Silvio Berlusconi —, o primeiro time de todos tinha de ser o que se vestia de amaranto.

Em curto espaço de tempo, Lucarelli passou por Santa Croce sull'Arno, Perugia e Cosenza. Em 1995-96, fez um excepcional campeonato na Serie B italiana. Com 20 para 21 anos, balançou as redes 15 vezes, em 32 jogos. Seu desempenho fez a diferença para o time, que somou apenas três pontos a mais do que Fidelis Andria, o primeiro rebaixado. Foi assim que Cristiano carimbou seu passaporte para as Olimpíadas de Atlanta. Ao lado de gente como Alessandro Nesta, Fabio Cannavaro, Marco Delvecchio e Gianluigi Buffon, integrou a equipe da Azzurra que fracassou retumbantemente, ficando com o último lugar do Grupo C, atrás de México, Gana e Coreia do Sul.

Lucarelli seguiu progredindo, passando ao Padova. Também se manteve na seleção italiana sub-21. Até que, em sua nona partida pela Nazionale deste escalão, numa partida contra a Moldávia disputada justamente no Stadio Armando Picchi, protagonizou um momento que mudou a forma como a Itália olhava para ele. Depois de receber um passe açucarado de Francesco Totti, em profundidade, marcou um gol. Sem conseguir se conter, correu para os braços de seu povo, na curva nord, levantando a camisa. Por baixo, trazia outra, com os seguintes dizeres: “O Livorno é uma fé e os ultras seus profetas”, exibindo também o rosto de Ernesto Che Guevara.


Dali em diante, não foi mais chamado a representar a Itália no nível sub-21. Também passou a conviver com problemas com os ultras do Padova. Contudo, os gols seguiam falando por Lucarelli. Foram 14, em 34 partidas na Serie B, suficientes para que, na primeira divisão, a Atalanta buscasse seus serviços. O atacante não permaneceria muito tempo em Bérgamo, passaria sem sucesso pelo Valencia — no que reputa ter sido o maior fracasso de sua trajetória —, e voltaria à Itália para a disputa da temporada 1999-00, vestindo a camisa do Lecce. E sua carreira retomou o curso desejado.

Em dois anos envergando a maglia giallorossa, Lucarelli teve registros impressionantes. Pela Serie A, foram 27 gols, em 59 jogos, números suficientes para ajudar o time a se manter na elite. Essas marcas o levaram a, finalmente, dar um salto na carreira: o Torino seria sua nova casa a partir de 2001-02. A questão é que a mudança não funcionou. Os tentos do homem-gol rarearam. Será que estava sentindo a aproximação do momento que mais ansiava viver?

“A primeira coisa que ele me disse foi ‘me leve para o Livorno, me leve para o Livorno, me leve para o Livorno, é meu sonho desde criança”, disse Carlo Pallavicino, agente do jogador, também ao Futebol à Esquerda

Após mais uma temporada ruim no Toro, em que Cristiano acabou esquentando o banco para o ítalo-australiano Marco Ferrante, ele estava determinado a cumprir seu sonho. Desde o começo de sua trajetória, torcia com unhas e dentes para que o Livorno chegasse ao menos à Serie B. Em 2001-02, isso havia acontecido, mas seu longo contrato com o Torino era um entrave.

Na esteira de sua segunda temporada ruim em Turim, os Granate se mostraram dispostos a negociar Lucarelli. Mas, não havia ninguém interessado em pagar grandes montantes por seus serviços. Emprestar seria uma solução, contudo, não para um time intermediário da segunda divisão, para não desvalorizar o ativo do clube. No fim das contas, pesou o desejo do atacante, que aceitou receber menos para ser repassado ao Livorno.

Lucarelli Livorno
Foto: AFP/Getty Images/Arte: O Futebólogo

Em 2003-04, o sonho infantil se tornou realidade. E a história vivida foi digna de um romance de realismo fantástico. O pacto de Lucarelli com o Livorno foi mais do que isso, foi uma aliança com as arquibancadas e a cidade. 

Dinheiro é ótimo, realizar um sonho é melhor


A camisa 99 não foi escolhida ao acaso. O número fazia alusão ao ano de fundação da Brigate Autonome Livornesi, um fanático grupo de ultras do qual Cristiano era um dos fundadores. Recebido de braços abertos pelo povo, tal qual um herói libertador, o atacante fez extraordinários 29 gols, em 41 jogos. Por um tento, não foi o artilheiro máximo da Serie B, honraria que coube a Luca Toni, então no Palermo. Porém, o mais importante aconteceu: depois de uma espera de 55 anos, o Livorno retornou à elite, e Lucarelli fez o gol do acesso.

Se sua condição de ídolo já parecia ser daquelas sem limites, ela ganhou um capítulo extra na campanha seguinte. O Torino queria o retorno de seu jogador, após o espantoso desempenho da temporada 2003-04, mas Lucarelli estava determinado a ficar. Depois de uma queda de braço intensa com a direção granate, o atacante deu mais uma prova de seu amor ao Livorno: trocou o 1,2 milhão de euros oferecido pelo Toro, pelos 700 mil que os homens de amaranto podiam pagar. Permaneceu em casa, preservando um vínculo que parecia ter sido escrito nas estrelas.

O sonho não acabou. A reestreia na elite aconteceu contra o odiado campeão vigente, o Milan. Em San Siro, Clarence Seedorf abriu a contagem para os milanistas. Lucarelli empatou. Seedorf fez mais um. E Lucarelli voltou a empatar. Para quem esperava uma surra dos Rossoneri, o empate acabou tendo o peso de um título para o Livorno, que colocou sua cidade em festa. 

Aquela temporada foi tão fabulosa que o time toscano conseguiu terminar a Serie A na nona posição, bem longe da zona de descenso. Lucarelli foi o artilheiro da competição, balançando as redes rivais 24 vezes. Por apenas um gol, não ficou também com a Chuteira de Ouro da Europa, que acabou dividida entre Diego Forlán e Thierry Henry.


De repente, não era mais possível ignorar Cristiano Lucarelli. O treinador da Azzurra, Marcelo Lippi, decidiu que era hora de ele ganhar chances na seleção principal, ainda que não tenham sido muitas ou boas. E apesar de toda a ligação com sua terra, naquela altura o atacante queria representar a Itália.

Até os melhores relacionamentos têm problemas


Qual era o limite para Lucarelli e o Livorno? O céu, talvez. Em 2005-06, o atacante empilhou mais 19 gols e seu time terminou o Campeonato Italiano na sexta posição. Pela primeira vez na história, os livorneses se classificaram para uma competição europeia. O time que representava uma cidade antissistema e que tinha, dentro do campo, um porta-voz do povo, viajaria pelo continente.

Porém, as primeiras rachaduras na relação entre jogador e clube já começavam a ser notadas. Insatisfeito por ter ficado fora do grupo de 23 jogadores que viajou ao Mundial da Alemanha, Lucarelli também entrou em rota de colisão com o presidente do clube, Aldo Spinelli, que parecia invejar o enorme estatuto do artilheiro junto aos livorneses. No fim das contas, o jogador permaneceu, renovando o contrato até 2010. “Estou seguro de que esta foi a última vez na qual eu e Spinelli brigamos. Agora, posso pensar somente no trabalho dentro de campo”, garantiu. 

Não foi bem assim. E a relação com a torcida também estremeceu.

Lucarelli sempre fora mão aberta com seu povo. Costumeiramente, recebia pedidos de toda sorte, e os atendia. Se alguém lhe pedisse para pagar uma conta, prontamente ele o fazia. Com o tempo, o volume de pedidos aumentou e as pessoas próximas ao atacante o aconselharam a deixar de ser tão benevolente. Os ultras livorneses viram isso com maus olhos e passaram a ignorar seu ídolo, deixando de cantar seu nome, inclusive. Cristiano jogou a temporada 2006-07 infeliz. Ainda assim, somou 25 tentos, em 42 jogos, ajudando o Livorno a superar a fase de grupos da Copa da Uefa, antes de ser eliminado pelo Espanyol, eventual finalista vencido.

Houve, entretanto, um momento em que a ruptura se tornou inevitável. Na 32ª rodada da Serie A, o Livorno recebeu a Reggina, que lutava contra o rebaixamento. Do outro lado, estava ninguém menos do que Alessandro Lucarelli, o irmão de Cristiano; o outro filho de Maurizio. Após o empate por 1 a 1, o atacante foi chamado de mafioso, acusado de ter favorecido o time de seu irmão. Ali, o elo se quebrou.

Lucarelli Shakhtar
Foto: Sky Sports/Arte: O Futebólogo

“Agora chega, vou cortar o cordão umbilical com o Livorno. Farei meu dever até o fim para terminar o campeonato da melhor forma, mas é uma vergonha que se acuse a equipe de falta de empenho e de armar partidas, porque o Livorno, sobretudo, sempre foi um clube que nunca fez falar de si por questões extracampo. Que ninguém venha me procurar para me fazer voltar atrás. No fim do campeonato, mudarei de ares”, disparou Cristiano Lucarelli.

Foi assim que, depois de colocar Livorno aos seus pés, de ajudar a sociedade, de inclusive salvar o porto local da falência (promovendo a criação de uma cooperativa que uniu os trabalhadores e evitou o pior), pela porta dos fundos, o atacante se despediu do seu grande amor e foi ganhar dinheiro no Shakhtar Donetsk, que pagou 9 milhões de euros por seus serviços. 

Ainda ferido, Lucarelli não se adaptaria à Ucrânia e, seis meses depois, estava de volta à Itália. O destino foi o Parma. O time caiu e o atacante não emplacou. Ao menos, em 2008-09, viveu a experiência de jogar com o irmão, também contratado pelos Crociati.

Sangue amaranto


A história mal terminada com o Livorno ainda ganharia mais um capítulo. Em 2009-10, Lucarelli voltou para casa. O fez para celebrar os amigos que nunca o abandonaram e que chegaram, até mesmo, a viajar a Milão para vê-lo enfrentar o Milan, quando atuava pelo Shakhtar, em partida da Liga dos Campeões. Aos poucos, Cristiano recuperou o carinho perdido e que, mesmo ciente de não ter feito nada errado, desejava ter de volta. A temporada foi trágica. O Livorno caiu. E, cansado de Spinelli, o atacante decidiu deixar o clube de uma vez por todas.

Em seu último jogo pelo Livorno, Lucarelli faz um gol que não evita a derrota para a Lazio, 2 a 1. É substituído pouco depois do intervalo e dá tchau. Sem alarde, até pela falta de clima. Na saída, não passou a braçadeira de capitão adiante. Caminhou até a curva nord, em direção aos ultras. Tirou a faixa e jogou para eles. Na sequência, ouviu-se o ecoar de um último Bella Ciao, o famoso hino antifascista, pelo Stadio Armando Picchi. Ali, a torcida entendia que não havia mais volta, e que o melhor era dar a Lucarelli o reconhecimento que merecia, afinal ninguém podia colocar em dúvida o fato de que se tratava do maior jogador da história do clube.


Sem qualquer sucesso, o atacante terminaria a carreira no Napoli, que representou por duas temporadas.

No fim das contas, a conclusão a que se chega é só uma: ao longo de toda a sua carreira, o coração de Lucarelli pulsou pelo Livorno. Não só pelo clube, mas pela cidade, pela gente — e por sua família, que o ensinou a valorizar o que sua terra tinha de especial. Cristiano trocou (muito) dinheiro pela realização de seu sonho.

O atacante sempre foi um homem de posicionamento político de esquerda, mas que teve dificuldades para se declarar comunista ou socialista, até por ter restrições às experiências políticas levadas adiante sob essas nomenclaturas. No fundo, só queria ser alguém de quem seu povo pudesse se orgulhar. Lucarelli trabalhou para ser reconhecido em sua casa, no lugar em que as pessoas, antes de se declararem italianas ou toscanas, garantirão ser livornesas. Ali, onde o vermelho nunca será grená, mas amaranto.

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