A Copa da Uefa que projetou Louis van Gaal

A narrativa do futebol holandês se divide em dois mundos: o dos gênios da bola e o das mentes brilhantes (às vezes nem tanto) dos bancos de reservas. De Piet Keizer a Arjen Robben; de Rinus Michels a Erik ten Hag. Quase sempre que os êxitos de dentro do campo se manifestaram, viu-se esse cosmos: conjugação técnico-tática capaz de fazer o universo se render ao fascínio, ao menos durante 90 minutos. Foi um pouco disso que se verificou em 1991-92, quando dois jovens, Louis van Gaal e Dennis Bergkamp, recolocaram o Ajax na rota dos títulos continentais, amaciando o terreno para que, pouco depois, viesse a mais desejada das conquistas.

Ajax UEFA CUP
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo


Vamos jogar, Ajax


Em 1991, quando Louis van Gaal assumiu o comando do Ajax, já se sabia que sua missão era tudo menos tranquila. Viviam-se anos de domínio do PSV — que havia conquistado seis dos últimos sete nacionais, além da Copa dos Campeões da Europa em 1987-88. Já os Godenzonen haviam vencido apenas um campeonato holandês, em 1989-90, e vinham sendo criticados pela traição do estilo de jogo que lhes era historicamente peculiar.

Treinado por Leo Beenhakker entre 1989 e 1991, o time consumiu doses cavalares de pragmatismo. Para se entender o que isso significou, basta dizer que no ano em que o clube venceu a Eredivisie pela última vez, teve seu pior ataque desde 1976-77. Por outro lado, contou com a retaguarda mais sólida desde 1972-73. Foram 67 gols pró e 23 contra. Houve quatro 0 a 0 na campanha, uma completa heresia para os amsterdaneses.




Foi nesse sentido que o jornalista David Winner escreveu, na obra Brillant Orange: The Neurotic Genius of Dutch Football:

“A ideia holandesa de prática de futebol bonito — bom futebol — está tão arraigada, que muitos treinadores, jornalistas e torcedores insistem que ganhar é menos importante do que jogar bem. ‘Don Leo’, no entanto [...] Beenhakker assegurou o campeonato holandês de 1999 com o Feyenoord com um estilo que ele livremente admite ter sido ‘prático’”.

Leo Beenhakker Louis van Gaal
Foto: Cor Mulder/ Arte: O Futebólogo
O curioso é que na quietude de seus pensamentos — dissonantes com os de seu chefe —, Van Gaal, que era auxiliar técnico até então, exercia a laboriosa tarefa de criar sua própria ideia de jogo. Aparentemente, isso não passou despercebido aos olhos da direção do Ajax, quando de sua efetivação. Embora não fosse um adepto cego do Futebol Total, ou um aprendiz do cruyffismo, Louis logo colocou em prática um jeito de jogar completamente diferente do de Beenhakker.

A ideia de “todos fazem tudo” foi adaptada por ele a algo mais mecânico, sistêmico. O ponto de partida não precisava ser o esquema 4-3-3, embora tenha sido sua escolha naquele momento. Ao livro de Winner, Gerard van der Lem, braço direito de Van Gaal no Ajax, refletiu: “O princípio básico é a posse de bola. Treinamos isso incansavelmente [...] As pessoas pensam que nosso sistema é rígido, mas não é [...] O negócio é entender quais consequências as formações trazem para a equipe”.

Um astro potencializado pelo coletivo


No início da missão de Van Gaal, ao menos uma questão foi fácil de trabalhar. Havia no ataque do time um dos jogadores mais refinados e letais que o futebol holandês produziu. Ele havia sido artilheiro da Eredivisie em 1990-91 e também recebera o prêmio de holandês do ano. Tinha apenas 21 anos e respondia por Dennis Bergkamp. Já não era um garotinho que surgia como alternativa ao astro Marco van Basten, na segunda metade dos anos 1980.

O atacante foi sempre uma garantia para o Ajax. E voltaria a confirmar esse status em 1991-92: mais uma vez, artilheiro; como quase sempre, brilhante. Ele foi o cara que o time precisou para sair do marasmo e começar uma nova revolução. No entanto, não dá para dizer que a qualidade dos comandados de Van Gaal se limitava ao talento de Bergkamp. 

Já na primeira construção das jogadas, a bola era muito bem tratada. As presenças, por exemplo, de Frank de Boer, Aron Winter e Wim Jonk, todos íntimos da bola, não permitem que se pense algo diferente. Adiante, a situação também favorecia a prática de um futebol vistoso, com a destreza de John van‘t Schip e Bryan Roy, explorando a velocidade pelos flancos. E Bergkamp tinha um parceiro importante na missão de marcar gols: o sueco Stefan Pettersson, um artilheiro que não se limitava ao toque final, possuindo uma pé potente e boa colocação na área para aproveitar cruzamentos — por baixo e por cima.

Bergkamp Ajax 1992
Foto: Shaun Botterill/Getty Images/ Arte: O Futebólogo
Tratava-se de um 4-3-3, que se adiantava no campo para pressionar o rival e buscava sempre alcançar superioridade numérica. Com a bola, abria os pontas e muita gente chegava à área, o que ajuda a entender os vários gols que gente como Jonk e Winter marcou na época. Era um time que encurtava o campo para recuperar a bola e o alargava para atacar, abusando de velocidade para criar espaços. Além disso, quando não resolvia rapidamente a jogada, tentava enviar a bola de um lado ao outro, também para atacar um adversário em inferioridade numérica.

No fim das contas, em que pese o brilho individual de Bergkamp, o trunfo de Van Gaal foi mesmo o estabelecimento de um sistema coeso e funcional. Esse que passou a ser a marca de seus sucessos. “Louis dá aos jogadores as instruções para que o sistema funcione. O sistema é sagrado. Todos os jogadores são iguais para Van Gaal, grandes nomes não existem para ele e todos são subordinados do time e do sistema, seu sistema”, disse Bergkamp ao Sky Sports.

Missão Europa


Com a perda do título holandês do ano anterior para o PSV (ainda que apenas em critérios de desempate), o Ajax teve de se contentar com a disputa da Copa da Uefa, em 1991-92. No entanto, o trabalho de um jovem treinador exigia resultados, não importando sua origem. E não era como se a competição continental se apresentasse esvaziada. Os Godenzonen eram um dos times mais tradicionais, mas também estavam lá Real Madrid, Bayern de Munique, Internazionale, Liverpool…

O primeiro desafio foi moleza para o Ajax. Os holandeses tiveram pela frente os suecos do Örebro e passaram sem dificuldades. O primeiro encontro, em Amsterdã, resolveu a parada. Bergkamp, Winter e Pettersson liquidaram a fatura: 3 a 0. Na volta, o solitário gol de Winter ratificou o evidente. A seguir, os amsterdaneses pegaram os alemães do Rot-Weiss Erfurt. Continuaram mostrando força: na ida, como visitante, 2 a 1; na decisão, 3 a 0, em casa. Detalhe, o “em casa” acabou sendo força de expressão, já que, punido por hooliganismo, o time teve de mandar o encontro em Dusseldorf, já que a pena exigia que o time atuasse 200 km distante da capital holandesa.

Uefa Cup 1992
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo
No entanto, se a impressão era a de que o caminho seria todo ele fácil e sem acidentes de percurso, ela se comprovou um equívoco. Na terceira fase, o Ajax enfrentou o Osasuna. Bergkamp enterrou todos os planos dos navarros. Porém, os jogos foram apertados. Em Pamplona, o craque sufocou o ânimo da casa pouco depois da volta do intervalo, marcando o único gol do encontro aos 47 minutos. Na volta, outra vez em Dusseldorf, os comandados de Van Gaal fizeram apenas o elementar. Bergkamp anotou o solitário tento da vitória no início do jogo e o time apenas manteve o escore até o apito final.

As quartas de finais colocaram dois vizinhos em confronto. O Ajax teve de viajar pouco mais de 200 km para enfrentar o Gent, na Bélgica. O jogo de ida foi marcado por equilíbrio. Treinados por um importante nome do futebol local, René Vandereycken, os anfitriões seguraram o 0 a 0. Entretanto, no retorno a Amsterdã, os comandados de Louis van Gaal fizeram valer o favoritismo que carregavam. Impiedosos, plicaram um sonoro 3 a 0 — gols de Michel Kreek, Bergkamp e Jonk.

Passando apertado na Itália


Depois de passar dificuldades em um primeiro momento e acabar atropelando o Gent, o Ajax enfrentou a dureza de um futebol italiano que ainda vivia grandes momentos. O adversário da semifinal foi o Genoa, o time que acabara de eliminar o Liverpool e contava com um artilheiro on fire, o uruguaio Carlos Aguillera. Na ida, os Godenzonen passaram um susto enorme. O começo, porém, foi da melhor forma possível, com gol já no primeiro minuto, de Pettersson. Aos 61, Roy aumentou a vantagem. 


No entanto, em menos de dez minutos, os italianos empataram, com dois tentos de Aguillera. O gol do alívio só veio aos 89 minutos, com Winter. Os holandeses deixaram a Ligúria vivos, mas cientes das dificuldades que enfrentariam na decisão. Em Amsterdã, o Genoa saiu na frente, mas Bergkamp empatou. E foi isso. Com um 4 a 3 apertadinho no placar agregado, o Ajax chegava a mais uma final europeia. Do outro lado da chave, o Torino passara pelo Real Madrid, também nos detalhes (3 a 2 na soma dos marcadores).

Na final, em um estádio Delle Alpi abarrotado, com mais de 60 mil pessoas, a Europa viu uma grande exibição de Walter Casagrande, titular de um jovem Christian Vieri. Marcando em cima, o Ajax recuperou a bola no campo do Torino e ela logo chegou a Jonk que acertou um petardo do meio da rua, para marcar o primeiro gol do encontro. Mas o Toro foi à luta.


Aos ‘65, Casagrande aproveitou o rebote do goleiro Stanley Menzo, após chute potente de Gianluigi Lentini, e empatou. Os holandeses reassumiram o controle da final aos 73 minutos, com Pettersson, de pênalti. Porém, antes do fim, o espanhol Rafael Martín Vázquez colocou o Casão em boas condições. Ele limpou a marcação de Danny Blind e empatou, trazendo os italianos de volta para o jogo. Foi isso nos primeiros 90 minutos. Aliás, isso foi tudo, porque na Holanda o zero não saiu do placar, confirmando o título do Ajax no critério do gol marcado fora de casa.

Há certo anticlímax em um título conquistado por um clube como o Ajax que sai apenas em detalhes tão pequenos. No entanto, isso não diminui em nada a conquista. Primeiro, porque era apenas o início do trabalho de Louis van Gaal. Segundo, em razão do fato de que, logo, aquelas ideias se confirmariam geniais. Já sem Bergkamp, mas com um time igualmente recheado de craques, na Liga dos Campeões de 1995. 

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