O Cantinho de Morais: O gol olímpico que deu um título europeu ao Sporting

Era difícil não viver à sombra dos feitos do rival Benfica. Afinal, lá atuava o maior jogador português de até aquele momento histórico. Comandados por Eusébio, os Encarnados varriam os adversários nacional e continentalmente. Foram oito títulos portugueses e duas Copa dos Campeões da Europa entre 1960 e 69. O que essa realidade por vezes mascara é a existência de mais equipes em boa forma em Lisboa. Em 1962-63 e 1963-64, o Sporting deixou isso sublinhado. Valeu até gol olímpico.

Sporting CP UEFA Cup Winners' Cup 1963-64 Taça das Taças
Foto: Sporting/ Arte: O Futebólogo

Esperando para dar o bote


É verdade: o Benfica conquistou o Campeonato Português da temporada 1962-63. No entanto, em poucos dias, os motivos de sorrisos para seus torcedores rarearam. Em toada diversa, as gargalhadas do sportinguista se fizeram ouvir, barulhentas — o que não era propriamente esperado. 

A última rodada do torneio nacional foi disputada em 12 de maio de 1963. Porém, os Encarnados já eram os conhecidos campeões há algumas rodadas. Eles terminaram seis pontos à frente do Porto, superiorizando-se por 10 aos Leões.

Paralelamente, os benfiquistas mantinham seu reinado continental. Os bicampeões europeus daquele momento se preparavam para jogar sua terceira final consecutiva da Copa dos Campeões. Depois de avançar diretamente à primeira fase, pulando a preliminar (privilégio de campeão), o time vermelho superara os campeões suecos, tchecos e holandeses: Norrköping, Dukla Praga e Feyenoord. Assim, em 22 de maio, no mítico estádio de Wembley, era esperado pelo Milan.

Em que pese a força do escrete lisboeta, os homens de Milão não se apresentavam com menor distinção. Liderados pelo treinador Nereo Rocco, a quem muitos atribuem a criação do famigerado catenaccio, possuíam a liderança de Cesare Maldini, Giovanni Trapattoni e Dino Sani, ao mesmo tempo em que apostavam nos dotes técnicos de Gianni Rivera e nos gols de José Altafini, o Mazzola.

Ademais, à luz emanada a partir do talento dos lusitanos já se via contraposta a sombra da maldição lançada por seu antigo treinador Béla Guttmann. Em rota de colisão com a direção benfiquista, quando de sua saída, o húngaro bradou aos quatro ventos que nem em 100 anos o clube voltaria a vencer um torneio europeu. A primeira prova veio logo a seguir. Para deleite dos sportinguistas que, à espreita, esperavam sua chance de bater o rival.

De virada, o Milan venceu. Eusébio abriu o placar para as Águias, mas Altafini resgatou o espírito rossoneri, anotando os dois suficientes gols da vitória. A segunda queda estava por vir. 


O doce sabor da vingança


Os acontecimentos dos dias 15 e 22 de junho tiveram um sabor ainda mais especial para os Leões. Mesmo que tudo tenha começado em adversidade. Nos bastidores, havia problemas. Multados por uma “má exibição”, os jogadores do Sporting viram o lateral Mário Lino e o meio-campista Fernando Mendes ser afastados da equipe principal. A contragosto, como era de se esperar, os dois contestaram a punição e foram suspensos. 

Era evidente que o alviverde precisaria de todos os seus homens naquele momento decisivo. Depois de passar por Oliveirense, Cova da Piedade, Atlético e Lourenço Marques, enfrentaria o Benfica nas semifinais. E, na ida, José Águas marcou o solitário gol da vitória encarnada — no estádio José Alvalade. Não é exagerado dizer que reverter uma vantagem contra aquele Benfica no estádio da Luz era uma verdadeira missão impossível.

Entretanto, quando se defrontam dois grandes rivais, o impossível se ausenta. Desse modo, o Sporting precisou de pouco tempo para calar a fortaleza adversária naquele dérbi. Figueiredo foi o nome da alegria, aos 45’ e aos 48’. Coube àquele homem, de 149 gols em 239 jogos vestido de verde e branco, fazer os dois tentos da vitória.


Ao mesmo tempo em que carimbou seu passaporte para a final, o Sporting deu o golpe de misericórdia em seu arqui-inimigo, combalido depois dos eventos de Wembley. Na decisão, os Leões não hesitaram e destroçaram o Vitória de Guimarães: 4 a 0. Outra vez, Figueiredo colocou duas bolas nas redes, tendo sido acompanhado por Lúcio e Mascarenhas. 

Taça na mala, mais um carimbo no passaporte. Próxima parada: Recopa Europeia.

Saga europeia com final incrível


Campeões das copas nacionais europeias costumavam travar grandes batalhas continentais naquela extinta competição. Desse modo, depois de duas partidas, o Sporting precisou de um replay para eliminar os italianos da Atalanta na primeira fase do certame.

Na sequência, encontrou a única facilidade daquela disputa. Contra o APOEL, do Chipre, os portugueses estabeleceram a maior goleada da história em uma partida dentre todas as competições europeias. Inapelavelmente, o Sporting impôs um 16 a 1 em casa (que virou 18 a 1, no agregado).

Logo depois, o time viveu outro capítulo épico de sua história. O adversário foi o poderoso Manchester United. Treinados pelo mítico Sir Matt Busby, os Red Devils ostentavam uma linha de frente histórica, com Bobby Charlton, Denis Law e George Best. Sem pestanejar, em casa eles mostraram o que valiam. Com um tento de Charlton e um hat-trick de Law, venceram por 4 a 1. Porém, não contavam com a irresignação sportinguista.

Foto: The Guardian
Em seus domínios, o Leão rugiu forte e afastou seu visitante indigesto. Osvaldo, o belo-horizontino revelado no América e levado a Portugal por Yustrich que marcara o solitário tento na ida, viveu dia goleador. De seus pés saíram três gols. Estes, somados a um do ex-palmeirense Géo e outro do português Morais, ofertaram a sentença fatal para os homens de Manchester: 5 a 0.

No dia seguinte, os ingleses do The Guardian nada puderam fazer senão aclamar os feitos alviverdes:

“Depois que Osvaldo marcou seu terceiro gol, o quinto do Sporting na partida, o Manchester United aparentou ter perdido a esperança. Eles ficaram surpresos com o deslumbrante — e, tenho certeza, sem precedentes — futebol praticado pelos atacantes do Sporting”.

Antes de chegar à decisão, outra vez o Sporting foi levado às últimas consequências. Após dois empates com o Lyon, o time venceu mais um replay e foi à final contra o MTK Budapeste. 

No dia 13 de maio de 1964, portugueses e húngaros protagonizaram uma chuva de gols digna de uma partida que vale taça: 3 a 3. Sem a presença defensiva de Hilário, que sofrera lesão grave em partida contra o Vitória de Setúbal, o Sporting viu Figueiredo marcar dois e Mascarenhas somar mais um. Pelo outro lado, Istvan Kuti (duas vezes) e Károly Sandor integraram o placar de um jogo com duas viradas.

O Cantinho de Morais


Depois do jogo de ida franco em Bruxelas, uma partida fechada foi o que se viu na Antuérpia, dois dias depois. Então, outra vez o extraordinário teve de entrar em campo. Era sinalizado o minuto 19 da etapa inicial quando o lateral João Morais se dirigiu para o quarto de círculo aguardando autorização para cobrar um escanteio. Liberado para alçar a bola na área, fez melhor, acertou o gol.

Jornal Sporting Taça das Taças 1963-64
Foto: Jornal do Sporting
Diferentemente do modo como a referência é feita no Brasil, em Portugal os escanteios são referidos como “cantos”. Assim, foi eternizado o “Cantinho de Morais”, o único gol daquela partida de desempate. Mais tarde, o feito viraria, inclusive, canção popular. Não é para menos. Afinal de contas, o Sporting era campeão continental de modo incrível. 

Detalhe: tudo porque Hilário estava fora, conforme o próprio lesionado contou ao Jornal de Notícias: “A sua [de Morais] participação no jogo da final da Taça das Taças dá-se devido à minha lesão”. Já o protagonista da noite, falecido em 2010 e que jogaria a Copa do Mundo de 1966, tinha seu próprio jeito de recontar a façanha. Com o cuidado de um bom contador de casos e a certeza de que seu nome nunca deixará a história.

"Virei-me para o banco e confirmei se era eu a cobrar. O técnico acenou-me que sim. Lá fui. Peguei na bola com jeitinho, disse-lhe umas palavrinhas amigas, dei-lhe um beijinho. Depois, mal senti o pé a bater nela fiquei logo com a sensação de que seria gol".

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