O dia em que o Camp Nou aplaudiu Laurie Cunningham

Nunca foi comum ver jogadores ingleses atuando fora das Ilhas Britânicas. Foi um movimento icônico e sem precedentes o performado por Laurie Cunningham. Um dos pilares dos Three Degrees, a tríade de talentosos e socialmente importantes negros que representou o West Bromwich Albion nos anos 1970, o atacante foi vendido ao Real Madrid em 1979. Foi o primeiro inglês a representar os Merengues. E não tardaria a ser ovacionado por sua velocidade e habilidades. Insolitamente, na mais hostil das casas possíveis.

Laurie Cunningham Real Madrid
Foto: Bob Thomas/Getty Images/Arte: O Futebólogo


Encanto desde a estreia, estrela no primeiro dérbi e esquecimento


A trajetória de Cunningham na capital espanhola não foi das mais fáceis. Seu alto custo, 950 mil libras, e uma suposta falta de consistência foram, constantemente, contrapostos aos dribles desconcertantes e o futebol bailarino exibidos pelo inglês. Um dançarino conhecido das boates inglesas de música soul e um jogador elegante, velocíssimo e de habilidades extravagantes, era capaz dos brilhos mais reluzentes. Como em sua estreia no Campeonato Espanhol. 

Contra o Valencia, na primeira partida do certame, marcou logo dois. Ofuscou ninguém menos que o argentino Mario Kempes, monstro sagrado do Mestalla. Duas rodadas mais tarde, participaria da primeira de duas demolições em face do Barcelona.

No Santiago Bernabéu, o Real saiu vencedor de um jogo completamente insano. O placar foi construído em 36 minutos: 3 a 2 para os madrilenhos. Atuando ao lado de figuras como as de Uli Stielike, Vicente Del Bosque, Juanito e Santillana, Cunningham marcou uma vez. E foi justamente o tento do triunfo, aos 32 da etapa inicial.

Laurie Cunningham West Bromwich Albion WBA
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo
Mesmo assim, a crônica do El País no dia seguinte foi dura com o inglês: “O Real Madrid, que este ano fez um esforço supremo nas contratações, nos deixou mais um domingo com dúvidas se Cunningham será uma boa contratação”. Os questionamentos continuariam. Os gols, de fato, não viriam a ser muitos com a camisa alva. Naquela temporada, sairiam mais cinco. Já em 1980-81, até largaria bem, emplacando tentos nas duas partidas iniciais. Mas jogaria pouco, agora sofrendo lesões constantes.

No Campeonato Espanhol, só apareceria até a 13ª rodada. Atuaria, ainda, na final da Copa dos Campeões. Mas apenas para justificar sua existência e diminuir as cobranças que pairavam sobre o clube, já que não tinha condições físicas de desempenhar bem contra o Liverpool, em Paris. Dali em diante, quase não atuou. Em 1982, acabaria preterido pelo holandês John Metgod (em um tempo que só permitia a presença de dois estrangeiros, sendo um deles Stielike). No ano seguinte, partiria para o primeiro empréstimo. 

Pouco aproveitado no Manchester United, voltaria à Espanha para ser cedido outra vez, agora ao Sporting Gijón, antes de ser vendido, definitivamente, para o Olympique de Marseille.

Técnica reconhecida na casa rival


Apesar disso, sua estadia na casa do Real Madrid jamais será esquecida. A história não permite. Pois, os mesmos livros que contam que as arquibancadas do estádio Santiago Bernabéu já prestaram ovação a Diego Maradona, Ronaldinho e Alessandro Del Piero, ilustres adversários que pasmaram os torcedores madrilenhos a um nível que conduziu ao seu reconhecimento e admiração, revelam que os feitos de Cunningham não passaram despercebidos pelo Camp Nou.

Era o dia 10 de fevereiro de 1980, a 20ª rodada do Campeonato Espanhol. Em casa, o Barça queria se vingar de seu rival, vencedor no primeiro turno. Mas, em dois minutos, os cânticos de apoio foram suplantados por olhares atônitos. Primeiro, García Hernández se aproveitou de uma jogada de Santillana e fez o 1 a 0. Então, subitamente, uma força da natureza provocou assombro. Sem que para isso tenha tido que marcar gols.

Cunningham construiu o segundo gol, aos 63 minutos. Santillana foi o responsável por colocar a bola na rede do arqueiro catalão, Artola. Porém, tudo só foi possível porque, como um míssil, Laurie recuperou a bola pela ponta esquerda do ataque Merengue, superou na mais pura força seus marcadores e saiu sozinho, tendo todo o tempo para, com a parte externa do pé, passar para Santillana.

Laurie Cunningham Real Madrid Barcelona
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo
Os presentes somente conseguiram se levantar e aplaudir. Não a iminente derrota, que se confirmaria, mas os talentos extraordinários que aquele inglês acabara de mostrar. Costumeiramente crítico, o El País se rendeu: 

“Cunningham foi a figura do jogo: seu futebol justificou por uma vez o elevadíssimo preço pago por ele [...] O único consolo para o público barcelonista foi o desfrute do espetáculo que oferecia Cunningham cada vez que a bola caía em seus pés, e em seus cortes, ante as entradas assustadoras de Zuviría. Suas súbitas arrancadas e seu controle de bola foram premiados com aplausos, como se a partida fosse disputada no campo do Madrid [...] O público de Barcelona demonstrou que sabe se colocar do lado do melhor, mesmo que o melhor não seja o Barça”.

Os catalães do Sport também revelaram sua admiração, no jornal do dia seguinte: “O público do Camp Nou prestou tributo a Cunningham, em uma demonstração de exemplar esportividade [...] Jogadores com a qualidade de Cunningham são os que nos fazem torcer e obrigam as fronteiras a se abrir aos estrangeiros”. Por sua vez, o também catalão Mundo Deportivo sentenciou: “Cunningham — genial — foi a figura e ganhou os aplausos”. 

Que a passagem de Laurie Cunningham pelo Real Madrid não tenha sido tão proveitosa quanto se esperava. As vitórias imponentes ante o Barcelona na temporada 1979-80 não poderiam permitir que o inglês fosse esquecido. Muito menos o reconhecimento da superioridade Merengue pelos culés — o que é raro —, e os aplausos ao grande artista da noite, aquele homem que, apesar de ser rival, destacava-se pela ginga e a força de seus movimentos.

E que, tragicamente, morreria em um acidente de carro, em 1989.

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