Jack Charlton: o inglês mais amado da Irlanda

As tensões entre Irlanda e Reino Unido guardam raízes antigas. Nos anos 1960, elas tiveram seu pavio reaceso, a partir das reivindicações de direitos das minorias católicas na Irlanda do Norte. À repressão policial local se somaram as Forças Armadas inglesas e irlandesas, além de grupos paramilitares — destacando-se os dois braços do IRA (Exército Republicano Irlandês). Um pouco mais tarde, na década de 1980 e ainda em meio a um ambiente bélico, a seleção irlandesa de futebol apostou suas fichas em um homem inglês. Tentava superar sua histórica irrelevância, mas parecia combater fogo com mais fogo.

Jack Charlton Ireland Italia 1990 World Cup
Foto: Ray McManus/Sportsfile/Arte: O Futebólogo


Para vencer, um vencedor



Aquilo não era fácil de digerir. Não apenas porque estavam entregando o comando a um inglês, mas também porque aquilo era uma admissão de que, sim, aqueles odiados vizinhos entendiam mais do riscado do que os irlandeses. Jack era, ainda, o primeiro não-irlandês a assumir a missão.

Os contatos vinham desde o fim de 1985, como Charlton recorda em sua autobiografia, e o início foi difícil. Aliás, ele sequer era a opção preferida da FA, que queria Bob Paisley, ex-Liverpool. Jack, que, depois de uma carreira brilhante como zagueiro do Leeds United, havia passado por Middlesbrough, Sheffield Wednesday e Newcastle como comandante, teve dificuldades na estreia contra o País de Gales. O amistoso sediado em Dublin aconteceu em março, e presenciou o solitário gol de Ian Rush, na derrota irlandesa.

Jack Charlton England World Cup 1966
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

As coisas começariam a mudar logo. Em maio, o Green Army viajou à Islândia, para jogar um triangular amistoso. Na oportunidade, venceu os anfitriões e a Tchecoslováquia e, campeão, deixou o país nórdico. Charlton começava a dar cara ao time: 

“O objetivo primário era colocar a bola na área na primeira oportunidade [...] Não faria sentido para mim tentar emular a fórmula europeia de jogar. Eles estavam 20, 25 anos à nossa frente nesse tipo de jogo [...] Se nossos meio-campistas tivessem a bola, eles a entregariam aos laterais. Esses avançariam tão longe quanto quisessem, antes de colocar a bola atrás dos laterais rivais, e nós avançaríamos imediatamente, para condensar a área”, entregou o treinador, na mencionada autobiografia.

Para executar esse jogo, a Irlanda contou com uma base importante de jogadores; gente como Niall Quinn, Frank Stapleton, Ronnie Whelan, Chris Hughton e Kevin Moran. Mas o novo método também provocou algum rebuliço. Algumas peças, como Liam Brady, não estavam acostumadas a jogar daquele jeito e não gostaram. Mas Charlton estava convicto, entendendo, ainda, que precisava ir além. 

Assim, vasculhou o país e suas cercanias em busca de jogadores que pudessem representar a Irlanda, mesmo sem ter nascido no país. E voltou de suas viagens, dentre outros, com John Aldridge e Ray Houghton na mala, um inglês e um escocês.

John aLDRIDGE IRELAND
Foto: Sportsfile/Arte: O Futebólogo

Da ilha ao continente, para depois seguir ao Mundial


Mais durona do que nunca, a Irlanda parecia, enfim, estar preparada para triunfar. “Depois de apenas quatro jogos no comando da Irlanda, eu já estava bastante certo de que havia tomado a decisão certa [...] as pessoas em Dublin tinham suficiente fé para me dar uma chance de mostrar o que eu podia fazer”, contou Charlton, também em sua autobiografia.

Jack teve quatro meses para refletir sobre seu trabalho e ideias. Para valer, sua estreia competitiva aconteceu em setembro de 1986. Começava ali uma perseguição, em busca de uma vaga na Euro 1988. O Grupo 7 era acessível, embora marcado por equilíbrio. Ainda assim, os irlandeses se superiorizaram à Bulgária, de um jovem Hristo Stoichkov, à Bélgica, de Enzo Scifo, à vizinha, e rival, Escócia, e à fraca seleção de Luxemburgo.

Com apenas uma derrota, em oito jogos, a Irlanda foi adiante. Pela primeira vez. A única derrota do Green Army aconteceu na Bulgária. De resto, foram quatro vitórias e mais três empates os resultados que asseguraram avanço à Euro 88, a primeira grande competição a ser disputada pelos irlandeses na história, e o primeiro grande feito de Jack Charlton pelo país.

Antes da viagem à Alemanha, a Irlanda fez cinco amistoso de preparação. Venceu quatro e empatou apenas um. Apesar de ser uma novata no grande palco europeu, chegou em alta. E precisava, já que a Inglaterra a esperava. Isso mesmo, a estreia seria contra os Three Lions, os maiores rivais irlandeses, a nação de Jack.

A Irlanda não fez uma campanha memorável, mas retornou com boas memórias de suas viagens por Stuttgart, Hannover e Gelsenkirchen. O empate com a União Soviética e a derrota marginal para a Holanda, 1 a 0, não foram motivo para celebração. Já a estreia… 

O solitário gol de Houghton aos seis minutos de jogo contra os ingleses é lembrado como um dos grandes momentos da história do Green Army. Não só deu confiança aos jogadores e ao país, evidenciou que o inglês que comandava a equipe não era um espião infiltrado, mas um benfeitor disposto a defender a causa futebolística do Eire. A todo custo.


Itália 90


“Faça-nos ousar sonhar”, registrou a rede de televisão irlandesa RTE. Ali, já se sabia que um novo milagre havia sido operado. No Grupo 6 das eliminatórias para a Copa do Mundo de 1990, a ser disputada na Itália, a Espanha liderou, mas teve a Irlanda em seu encalço. Outra vez, a equipe de Jack Charlton perdeu apenas uma partida eliminatória — justamente o jogo mais difícil, contra a Fúria, em Sevilha. Garantiu, assim, vaga ao seu primeiro Mundial.

E foi um documentário da citada RTE que ofereceu uma nota explicativa sobre o que viria a acontecer no Bel Paese: “A Itália 90 ficou gravada para sempre na vida cultural e social irlandesa”. Os homens de verde chegaram à Bota embalados por um som produzido por uma de suas mais famosas banda de rock, o U2. Put’ em Under Pressure explicava, exatamente, o que se esperava do Green Army: “Não vai ser fácil para nós, mas também não será fácil para eles”, dizia um trecho da canção.


De fato, não foi fácil para ninguém.

O Grupo F era pesado, tinha Irlanda, Inglaterra, Holanda e Egito. Os homens de Jack Charlton empataram todos os jogos, avançando aos mata-matas em segundo lugar, um ponto atrás da Inglaterra. Em seu primeiro Mundial, os homens de verde chegaram às oitavas de finais. E não só. Contra os romenos, o zero não abandonou o placar. Contudo, a perfeição na disputa de pênaltis levou os irlandeses adiante. Foram também às quartas de finais.


Aquilo já era um sonho absurdo, poderia muito bem ser um romance de realismo-fantástico. Para um irlandês, era como se a vida estivesse em suspenso, o tempo tivesse sido congelado, e só fosse possível sentir: amor pela nação, orgulho do time, e gratidão a Jack Charlton. Mesmo quando o Green Army foi devolvido a realidade, o tombo não foi pesado. Aquele time não sofria quedas duras. A Itália precisou se aplicar para confirmar seu favoritismo de anfitriã, e avançar às semifinais com uma vitória simples, 1 a 0.


Um rosto amigo em meio à inimizade


Na volta para casa, a Irlanda foi celebrada. Foi um desses momentos que geram profundas marcas em uma nação. Exibindo um sorriso mais que convidativo, Jack falou ao público: “Me preocupa como teria sido a recepção se nós tivéssemos, de fato, vencido alguma coisa”. Ali, Charlton já era um deles, já havia se transformado no que viria a dizer no curso dos anos: “Um orgulhoso irlandês honorário”.

Os feitos da seleção da Irlanda iriam além. Depois de ficar um ponto distante da classificação à Euro 92 (o que foi sempre lamentado por Charlton, que dizia que, como a Dinamarca venceu, os irlandeses teriam chances reais de título), o Green Army disputou a Copa do Mundo de 1994. 

Outra vez, avançou às oitavas de finais, depois de ficar em segundo lugar de um novo grupo duro, com México, Itália e Noruega. Nesse turno, o sonho morreu ali mesmo, no primeiro mata-mata, depois da derrota ante a Holanda.


Isso não abalou o prestígio de Jack, que seguiu no comando da Irlanda para mais um ciclo de Eurocopa. O fim de sua passagem aconteceria apenas ao final de 1995, após mais uma campanha de insucesso na busca por uma vaga continental, para a Euro 96. 

Isso acabou levando o treinador a pendurar a prancheta também, mas contra sua vontade, segundo contou ao Sunday Independent: “Não me aposentei, eu fui demitido, na verdade. Fui à reunião e me disseram que não me queriam mais [...] Pensei que aquilo foi um pouco duro, quando se pensa no que alcançamos”. 

Seja como for, Jack Charlton seguiu sendo um rosto inglês amigável aos irlandeses.

Ireland World Cup 1994
Foto: David Maher/Sportsfile/Arte: O Futebólogo

Aquele pescador amador, descrito por Niall Quinn como sendo “franco, grande, inglês”, foi eternizado como o maior revolucionário da história do futebol irlandês. Não só pelos feitos e pelo estilo de jogo, mas também pelo desejo de transformar o selecionado do Eire em um ambiente agradável: “Quero que os treinamentos na Irlanda sejam agradáveis para os que vierem, para que queiram vir e fazer parte dessa aventura”. 

Charlton admitia, por exemplo, que, sem excessos, seus jogadores tomassem cervejas e jogassem cartas, para se conhecerem melhor, contou Colin Young, autor de Jack Charlton: The Authorised Biography.

Um legado extenso


E há quem diga que a influência do treinador foi mais longe, no sentido de que o apreço dos irlandeses por aquele inglês teria diminuído a animosidade entre Reino Unido e Irlanda. Apostando que essa relação teria tido algum papel facilitador na assinatura do Tratado de Belfast, que, em 1998, colocou fim aos conflitos na Irlanda do Norte. 

“Ingleses não ficavam confortáveis vindo à Irlanda, então foi um grande passo para ele. E irlandeses não ficavam confortáveis com ingleses, como hoje. Sempre havia uma suspeita subjacente. Nos fizeram acreditar nisso quando crianças. Eu tinha 14, 15 anos quando as greves de fome estavam em andamento, havia bandeiras pretas fora das casas na rua e todo mundo na Irlanda dizia que Margaret Thatcher era o demônio. Isso foi apenas cinco anos antes de Jack vir, e isso não era viável por nenhuma brecha de imaginação”, disse Quinn, ao The42.

Jack Charlton Ireland
Foto: Sportsfile/Arte: O Futebólogo

Jack Charlton faleceu em 2020, aos 85 anos. As homenagens recebidas na Irlanda falam por si. O homem que transformou o futebol da nação, e levou as pessoas a acreditar que podiam sonhar com grandes conquistas, também se tornou símbolo de que há muito a ser explorado nas relações anglo-irlandesas. Em benefício mútuo. O antigo zagueiro e eterno treinador deixou um legado e se confirmou o inglês mais amado das terras do Eire, a partir de uma ideia que tinha tudo para dar errado.

Detalhe: Jack deixou o comando da Irlanda sem perder para a Inglaterra. Foram duas vitórias e três empates, em cinco encontros. Isso também não passou despercebido.

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