Em 1986, a valorosa estreia do Canadá em Mundiais

Quando se fala em esportes no Canadá, registra-se logo que o futebol não é a escolha prioritária de seus cidadãos — entendendo-se por futebol o soccer. Este dado, estampado em pesquisa da Canadian Heritage, ajuda a entender os motivos de os Canucks terem experimentado poucos sucessos futebolísticos em sua trajetória. Porém, embora escassas, as boas histórias canadenses existem. O cume da mais impressionante delas viria em 1986, no México.

Canadá World Cup 1986
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Jogos Olímpicos de 1984 geraram empolgação


Não há linearidade quando se fala nas participações internacionais da seleção canadense. Entre os mundiais de 1930 e 66, os homens de vermelho só disputaram as eliminatórias para o certame de 1958 — fracassando. Seu retorno aos grandes palcos aconteceria na qualificatória para a Copa do Mundo de 1970, em participação igualmente malsucedida. Ao menos, a partir da competição mexicana, os Canucks não voltaram a ficar fora da disputa por uma vaga na principal celebração de futebol do planeta.

Naquela década, especificamente em 1976, o mundo teria uma chance de ver o futebol canadense. Sediando os Jogos Olímpicos, em Montreal, o Canadá disputou a competição de futebol. No vermelho Grupo D, encontrou a URSS e a Coreia do Norte. Considerando a reserva de talento que os soviéticos levaram à América do Norte, o que incluía as presenças de David Kipiani e Oleg Blokhin, a derrota por 2 a 1 na estreia foi suave. A seguir, um novo revés, desta vez contra os norte-coreanos, colocou fim à efêmera participação canadense em uma competição de âmbito global.

Ao final daquele decênio em que o Canadá se reconectou com o soccer, viria a primeira participação dos Canucks em um Mundial. Contudo, de jogadores juniores. Em 1979, os canadenses viajaram à japonesa Kobe, onde disputaram três partidas do Grupo C. Foram, novamente, mal. Perderam para Paraguai e Coreia do Sul. No entanto, talvez já estivesse ali o primeiro sinal do que viria a ocorrer nos anos 1980. Contra Portugal, com gols de Branko Segota, nascido na Iugoslávia, e de Lajos Nagy, o Canadá venceu Portugal — o que, em termos de tabela, não serviu para nada.

Cinco anos depois daquela inesperada vitória contra os lusitanos, o Canadá voltou aos Jogos Olímpicos, desta vez se classificando na bola e não como país-sede. Embora fosse Los Angeles a sede da disputa, contra Iugoslávia, Iraque e Camarões, os canadianos jogaram sua sorte em Boston e Annapolis. A estreia contra os iraquianos, liderados por Hussein Saeed, terminou em um empate: 1 a 1. Contra o representante dos Bálcãs, a esperada derrota veio, mas sem contundência: 1 a 0 para a equipe que alinhava talentos como Srecko Katanec e Dragan Stojkovic. Por último, no encontro com Roger Milla, uma vitória impiedosa, 3 a 1.


Se já era estranho ver o Canadá numa competição internacional, ainda que não vinculada à FIFA, o que dizer de uma classificação à fase seguinte? Mais, como explicar que os Canucks não eliminaram o Brasil por muito, muito pouco. Comandada por Jair Picerni, a equipe da Canarinho usava o Internacional como base, alinhando figuras como Gilmar Rinaldi, Dunga, Mauro Galvão e Luiz Carlos Winck. 

Em Stanford, no mesmo dia em que Joaquim Cruz vencia o ouro nos 800 metros rasos, Dale Mitchell colocou o Canadá em vantagem. Gilmar Popoca resgatou o Brasil e o jogo só foi decidido nos pênaltis. Com mais sorte do que juízo, errando muito e tendo dificuldades contra a forte marcação dos canadenses, o time verde-amarelo passou.


Quase todo o elenco não tinha experiência internacional


Na altura de seu sucesso nos Jogos Olímpicos de 1984, o Canadá já tinha um líder crucial no banco de reservas. Depois de quase se classificar à Copa do Mundo de 1982 (precisava apenas vencer Cuba na partida decisiva, e torcer para que o México não vencesse. Mas empatou por 2 a 2, embora os mexicanos não tenham feito seu papel), o Canadá trocou Barrie Clark, professor da Vedder Junior Secondary que, desde 1979, vinha chefiando também as equipes de base do país, pelo inglês Tony Waiters.

Antigo goleiro do Blackpool, com passagem pela seleção inglesa nos anos 1960, Waiters era bem menos incógnito no meio do futebol do que seu antecessor. Conhecia o ambiente que o esperava, já que havia treinado o Vancouver Whitecaps, nos anos 1970. Mais do que isso, tinha sido responsável pelo triunfo da equipe na NASL de 1979, deixando o NY Cosmos (na altura contando com Franz Beckenbauer, Johan Neeskens, Carlos Alberto Torres e Giorgio Chinaglia) pelo caminho e vencendo o Tampa Bay na decisão.

O time encontrado por Waiters era composto por um misto de jovens e de atletas afirmados na NASL. Ou seja, embora parte do elenco canadense enfrentasse veteranos famosos na liga estadunidense, tratava-se de um grupo que havia viajado pouco e não tinha sido verdadeiramente testado contra equipes de fora da Concacaf. E aquela situação se tornaria ainda mais dramática, quando, em 1984, a NASL foi extinta. Como que da noite para o dia, os comandados de Tony Waiters perderam seus contratos, o ganha-pão — gente como Bruce Wilson, Randy Ragan, Pasquale De Luca, Trevor McCallum, Paul James, George Pakos, Ken Garraway, Paul Dolan e Igor Vrbalic.

Tony Waiters Canada
Foto: Canada Soccer/Arte: O Futebólogo

Quem não conseguiu se mudar para o futebol europeu, a suprema maioria dos atletas no caso, passou a atuar em ligas de futebol indoor, uma espécie de showbol. O cenário só não foi mais trágico porque, ao menos em termos de seleção nacional, havia mais tempo para Waiters preparar seu time para o próximo grande desafio: classificar-se à Copa do Mundo de 1986.

“A maioria dos jogadores não tinha time. Então, o que fizemos foi formar mais ou menos uma equipe-base. E muito bem, íamos a qualquer lugar que nos pagasse para jogar [...] Fizemos uma turnê pelo Norte da África. Fomos para a Ásia também. [Aceitávamos] Qualquer oportunidade de conseguir um jogo, em que houvesse dinheiro entrando, para podermos colocar parte desse dinheiro no bolso dos jogadores”, falou o treinador Waiters, anos mais tarde, como registra a Canadian Encyclopedia.

O trágico destino da NASL e o compromisso com a camisa canadense, todavia, ajudaram a consolidar um coletivo destinado ao reconhecimento internacional.

Classificação apertada nas eliminatórias, após facilidade na primeira fase


Em 1985, foi disputado o Campeonato da Concacaf, que determinaria um representante das Américas do Norte, Central e do Caribe na Copa do Mundo do ano seguinte. Originalmente, haveria duas vagas, mas como o México assumiu a missão de sediar a competição em substituição à Colômbia, que não reuniu as condições para servir de casa para a disputa, uma delas ficou com a Tri. Não havia, portanto, espaço para deslizes.

A primeira fase foi tranquila. A verdade é que não ofereceu muito desafio. Dividindo o Grupo 2 com as fracas equipes de Guatemala e Haiti, os Canucks passaram ilesos, com três vitórias e um empate. O fiel da balança acabou sendo o fato de terem vencido os guatemaltecos em casa e não lhes terem permitido desfrutar de uma desejada vingança no Canadá, já que os haitianos foram destroçados, perdendo todos os seus jogos. Apesar disso, a fase decisiva seria mais fatigante.


Naquele momento, o Canadá já havia buscado os préstimos do inglês Carl Valentine. Criado no Oldham e com longa passagem pelo Vancouver Whitecaps, havia retornado à Inglaterra, representando o West Brom, quando atendeu ao chamado canadiano. A bem da verdade, parte considerável daquele time era formada ou por estrangeiros com ligação familiar com o país, ou propriamente por imigrantes, como foram os casos dos escoceses Gerry Gray e Colin Miller, do goleiro italiano Tino Lettieri e do atacante Segota.

Com o funil já estreito, o Canadá disputou um triangular com Costa Rica e Honduras. Depois de empatar sem gols com os Ticos, os Canucks fizeram o jogo emblemático daquela campanha. Na viagem a Tegucigalpa, os canadenses acossaram a defesa hondurenha, forçando erros na saída de bola, e George Pakos, filho de poloneses, fez o único gol da partida, garantindo um triunfo vital para o Canadá.

Depois de ficar em nova igualdade com a Costa Rica, e de acompanhar a vitória de Honduras ante o mesmo adversário, o Canadá precisava vencer os Catrachos para conseguir a sonhada classificação. 

Com notas de amadorismo, já que a partida foi disputada em um estádio improvisado no King George V. Park, em St. John, na província de Newfoundland and Labrador, os Canucks foram à luta. Diante de 13 mil pessoas, Pakos colocou os donos da casa em vantagem. Porfirio Armando Betancourt, um dos grandes nomes hondurenhos e que atuava no Logroñes, empatou. Mas Igor Vrbalic deu números finais à contenda: 2 a 1. O Canadá viajaria ao México, disputando sua primeira Copa do Mundo. O sonho não podia parar.


Em um grupo dificílimo no Mundial de 1986, não havia muito o que fazer


Apesar de o futebol não ser o esporte mais popular do Canadá, a classificação para o Mundial de 1986 trouxe efeito positivo e empolgação. Não demorou nada para os Sons of Andrew, dupla de músicos de Alberta, comporem e gravarem a canção (Oh Canada) We'll Proudly Play for You, que se tornaria o hino da participação canadense no certame. Apesar disso, ela não chegaria a ser um sucesso, inclusive com a gravadora, Juniper Records, falindo e levando consigo o prejuízo de 3.500 cópias não vendidas do hit.


Estar em uma Copa do Mundo, por si só, era um acontecimento tão fantástico, que nem mesmo um sorteio terrível abalaria a alegria dos canadianos. Enfrentar a campeã europeia, França, que além do Carré Magique no meio tinha Jean-Pierre Papin e Dominique Rocheteau no ataque; a força da União Soviética, que alinhava o futuro Ballon d’Or de 1986, Igor Belanov; e a Hungria, que deixara a Holanda pelo caminho nas eliminatórias, dava a certeza de eliminação. Era natural que o Canadá tivesse a mais baixa cotação nas casas de apostas do planeta (1000 para 1), mas os Canucks não iam deixar de lutar.

Depois de se preparar para o torneio na altitude da região montanhosa do Colorado — com a parte do elenco que não tinha compromissos fixos nas quadras indoor e com clubes do exterior e projetando as dificuldades que viriam das elevações que encontraria em León (1.815 metros acima do nível do mar) e Irapuato (1.724) —, o Canadá viajou ao México. O elenco tinha 11 jogadores jogando na Major Indoor Soccer League estadunidense, cinco atletas na Europa (em Glentoran, da Irlanda do Norte, La Chaux-de-Fonds, da Suíça, Seraing, da Bélgica, e nos famosos PSV Eindhoven e Rangers), um no Monterrey, e mais cinco em times quase amadores do Canadá.

A estreia na competição foi contra a França. Parecia uma questão de se saber de quanto os Canucks perderiam. Atuando em 4-4-2, Waiters escalou Dolan; Bob Lenarduzzi, o capitão Bruce Wilson, Ian Bridge e Randy Samuel; Randy Ragan, Mike Sweeney, David Norman e Paul James; Carl Valentine e Vrbalic. Do outro lado, o técnico dos Bleus, Henri Michel, mandou a campo Joël Bats; Amoros, Bossis, Battiston e Thierry Tusseau; Jean Tigana, Luis Fernández, Michel Platini e Alain Giresse; Papin e Rocheteau. E o chocolate não veio.


"Sabíamos que os canadenses iriam correr muito e tentar dificultar as coisas para nós, mas fiquei muito surpreso por eles terem mostrado tanta agressividade. Eles tiveram momentos para marcar. Eles jogaram com honra. Eu os admiro", falou Henri Michel, após o jogo, como registrou a Canadian Encyclopedia.

Canada 1986 França
Acervo O Globo

De fato, depois de os franceses arrancarem um triunfo por apenas 1 a 0, no final da partida, e somente diante de uma rara falha defensiva canadense, não havia muito o que fazer senão reconhecer que não se vence um jogo por antecipação. Duros nas divididas, apostando em contragolpes rápidos pelos lados e importunando a defesa europeia o tempo todo com cruzamentos, o Canadá havia mostrado que podia competir sob os mais brilhantes holofotes.

Na sequência, no que o lateral Lenarduzzi reconheceria ter sido o maior erro do time na competição, o Canadá tentou bater de frente com a Hungria (que havia sido demolida pela URSS na estreia, 6 a 0). Os Canucks jogaram todas as suas fichas na partida. Perderam por 2 a 0 e deram adeus à possibilidade de avanço de fase. Por último, os soviéticos também passariam pelos canadenses, com um 2 a 0 conseguido a partir de tentos de Blokhin e Oleksandr Zavarov. Mas não havia o que recriminar. Contra equipes experimentadas e notoriamente superiores, os norte-americanos conseguiram sofrer poucos gols e não passar qualquer tipo de constrangimento.

URSS Canada 1986
Acervo Jornal do Brasil

“Pela perspectiva canadense, demos tudo o que podíamos dar. Nesta Copa do Mundo, isso não foi suficiente para ganhar um jogo ou marcar um gol. Mas acho que temos uma base sólida para o futuro. Sabemos o que temos que fazer para melhorar como país”, comentou Tony Waiters após o jogo, como registrou o Globe and Mail. O treinador mal sabia que logo deixaria a seleção.

Diante de uma participação tão brava no Mundial de 1986, capaz de inspirar gerações como a do zagueiro Jason de Vos, que atuaria quase uma década na Inglaterra e vestiria a camisa canadense entre 1997 e 2004, o desfecho da história acabou tendo sabor agridoce. Em 1989, o time não chegaria à fase final das eliminatórias para a Copa de 1990, não viajando à Itália. Quatro anos mais tarde, o Canadá conseguiria acesso ao quadrangular final qualificatório, ficando com a segunda colocação. Entretanto, em outra Copa do Mundo com anfitrião da Concacaf, os EUA, a vaga restante coube ao líder México.

Seja como for, o futebol, ou melhor, o soccer conseguiu se popularizar no Canadá, embora ainda não tenha a preferência da nação. O país segue demonstrando crescente interesse na modalidade, recebendo imigrantes de toda parte e tentando evoluir. O faz podendo olhar para o passado. Afinal, nos idos de 1986, um grupo especial de jogadores superou toda sorte de infortúnios para orgulhar os seus por meio do futebol.

Comentários

  1. Parabéns aos Canucks!
    Enfim, conseguiram voltar à Copa do Mundo, depois de 36 longos anos.
    Na expectativa de um bom papel do Canadá no Catar (se não o título mundial, pelo menos passar da primeira fase).

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