O retorno africano aos mundiais com Marrocos em 1970

Em 1970, a Copa do Mundo deu um passo importante para justificar seu nome. Durante décadas, não fizera jus ao pretenso caráter global; revelava-se uma disputa entre europeus e latino-americanos. A competição sediada no México seria eternizada por diversas razões, entre as quais o brilhantismo da Seleção Brasileira e a impressionante batalha travada por Alemanha e Itália nas semifinais. Também se tornaria inesquecível por ter trazido a África de volta aos maiores palcos futebolísticos, com o Marrocos.

MOROCCO 1970
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


Independência para os marroquinos


No início do século XX, após uma série de tensões conhecidas como Crises de Agadir e que envolveram inclusive a Alemanha, a soberania do Marrocos passou a ser responsabilidade da França. A partir da assinatura do Tratado de Fez, em 30 de março de 1912, o território saariano assumiu a condição de protetorado francês. Além disso, meses mais tarde, a porção norte seria assumida pela Espanha.

Essa situação perdurou até 1956, nem sempre pacificamente. Com efeito, em janeiro de 1944, chegou a ser declarada a independência do Marrocos, com apoio dos Estados Unidos. O documento, firmado por 66 nacionalistas, previa a instituição de um governo democrático, regido por uma nova constituição, a garantir direitos a todos os segmentos da sociedade. Notadamente, a liderança coube ao sultão Maomé V, motivado sobretudo pela perseguição francesa a nacionalistas marroquinos, na fase final da Segunda Guerra Mundial.

Ainda que não tenha sido oficialmente reconhecido, o movimento independentista aumentou as pressões pelo fim dos protetorados europeus no país. O final viria a ser consumado em dois momentos. Primeiro, em 2 de março de 1956, com a assinatura de uma declaração bilateral, entre França e Marrocos, respectivamente representados por Christian Pineau, ministro do exterior francês, e Mbarek Bekkaï, primeiro-ministro marroquino; depois, em 7 de abril, documento similar acabaria firmado em face dos espanhóis, representados por Alberto Martín-Artajo, também ministro do exterior.

“O reconhecimento da independência do Marrocos pela França veio entrosar-se, anteontem, através de uma declaração conjunta que a esse respeito se publicou em Paris [...] Todas as resistências das velhas metrópoles europeias têm sido inúteis para reprimir esse anseio geral de todos os povos pelo direito de autodeterminação, inscrito na Carta das Nações Unidas. O atraso em que vivem os países coloniais deixou de ser o fácil argumento pelo qual, nos círculos nacionalistas de opinião, são eles indefinidamente considerados como ‘não-amadurecidos’ para a independência, os acontecimentos estão demonstrado que, muito pelo contrário, é só com o autogoverno que esses povos podem pretender o rápido 'amadurecimento' para as conquistas da civilização [...]”, pontuou a Folha, em 4 de março de 1956.

A publicação destacava, ainda, que “o povo do Marrocos não lutou em vão”. Os movimentos ocorridos no país acompanhavam processos anti-colonialistas que se aceleravam na altura. Pouco antes da independência marroquina, a França perdera a Indochina, já se encontrando em vias de ser obrigada a aceitar semelhante desfecho em Argélia e Tunísia.


Até então, inexistia possibilidade de os marroquinos se organizarem futebolisticamente, ao redor de uma seleção nacional. Caso tais esforços fossem empreendidos, a FIFA não admitiria o Marrocos como membro. As primeiras eliminatórias disputadas pela nação seriam as classificatórias para o Mundial de 1962.

Quase em 1962, boicote e classificação


Teoricamente, as eliminatórias africanas seriam disputadas por seis países. Sudão, República Árabe Unida, Marrocos, Tunísia, Gana e Nigéria foram divididos em três duplas. Contudo, os dois primeiros desistiram da briga, o que levou a confrontos saarianos e subsaarianos. A verdade é que o equilíbrio da batalha entre marroquinos e tunisianos foi tamanho que, após empate em uma terceira partida, o confronto foi decidido pelo cara ou coroa.

Do outro lado, Gana avançou. Na disputa fatal, prevaleceu o solitário gol do marroquino Mohamed Khalfi, que consagrou o 1 a 0, na soma dos dois placares. O problema central é que inexistia vaga garantida para os africanos no Mundial. Ainda era necessário vencer um playoff contra um europeu. No confronto diante da Espanha, os Leões do Atlas mostraram brio, mas não foi suficiente. A Fúria avançou com um marcador somado de 4 a 2.


Desde 1934, com a participação do Egito, os Mundiais não encontravam um país africano. E não seria em 1966 que esse cenário se alteraria. O Berço do Mundo seguia sem direito a uma vaga direta no certame, agora disputando um lugar com a Ásia. Justamente por isso, as lideranças do continente se irresignaram com a injustiça, abrindo mão da disputa das eliminatórias. Nesse ínterim, o Marrocos sequer disputou edições da Copa Africana de Nações, ora desistindo, ora não se classificando.

Quase nada indicava que o Marrocos pudesse alcançar notoriedade futebolística em pouco tempo. Exceto um fator: o surgimento do atacante Ahmed Faras, em meados dos anos 1960. Ali, é claro, não se sabia que o artilheiro viria a ser o maior jogador da história do país. Ele apenas começava sua trajetória pelo Chabab Mohammédia e a seleção. Em 1968, quando começou a corrida por um lugar na Copa do Mundo de 1970, depois de a FIFA garantir uma vaga direta para os africanos, Faras já era parte integral do time treinado pela dupla formada por Guy Cluzeau e Abdellah Settati.

A bem da verdade, a campanha não teve nada de impressionante. Último campeão continental, o Congo abriu mão da disputa. As mais altas expectativas pendiam, então, sobre Gana, vice, já que também a Costa do Marfim, cujo craque, Laurent Pokou, faria sucesso no futebol francês dali alguns anos, não participou das eliminatórias. O primeiro desafio marroquino foi a equipe de Senegal. Após uma igualdade no placar agregado, 2 a 2, uma partida de desempate foi levada a cabo em Las Palmas, terreno neutro, mas muito mais próximo do Marrocos, que triunfou: 2 a 0.

Na fase seguinte, foi preciso sorte. Outra vez, a igualdade marcou a eliminatória. Contra a Tunísia, dois empates por 0 a 0 conduziram à disputa de um playoff. Em Marselha, as Águias de Cartago equalizaram o marcador já no apagar das luzes. O 2 a 2, alcançado aos 87 minutos, levou a partida para a prorrogação. O esperado desfecho não veio. Outra vez, a moedinha foi chamada a decidir uma qualificatória envolvendo os Leões do Atlas. Foi assim, num arroubo de boa fortuna, que o Marrocos avançou à fase final.

Nigéria e Sudão eram tudo o que separava o Marrocos da Copa do Mundo. O favoritismo ganês fora suplantado pelos nigerianos. E os saarianos fizeram o dever de casa: venceram as duas partidas disputadas em Casablanca, empatando com o Sudão, em Cartum. A derrota diante da Nigéria, em Ibadan, não impediu o sucesso marroquino, porque, nas disputas particulares entre nigerianos e sudaneses, empates afundaram os dois.

A Real Federação Marroquina de Futebol podia comprar passagens para o México.

Enfim, o mundo


West Germany Morocco 1970
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A presença no pote 4, reservado ao “resto do mundo” — o que evidenciava que a Copa do Mundo ainda era, majoritariamente, percebida como um torneio entre europeus e latino-americanos —, não fez qualquer favor ao Marrocos quando o sorteio definiu os grupos do Mundial. A Alemanha Ocidental era a cabeça de chave, acompanhada de uma geração forte do Peru, treinada por Didi e que contava com jovens como Teófilo Cubillas e Hugo Sotil, e pela Bulgária, que superara Polônia e Holanda no caminho à disputa.

A expectativa era a de que o Marrocos não apenas terminasse em último lugar no Grupo 4, mas também perdesse todas as partidas. 

Curiosamente, a classificação ao Mundial provocara uma mudança de rota no comando do selecionado saariano. Antigo internacional iugoslavo, Blagoje Vidinić, histórico goleiro do macedônio Vardar e do sérvio Radnički, terminara a carreira de atleta fazia pouco tempo e iniciaria a de treinador já na Copa do Mundo, com os marroquinos. Tinha 36 anos. E sofreu para selecionar o elenco mundialista, tanto que, de 22 possíveis, chamou apenas 19 atletas, todos oriundos da liga local.

A estreia já seria no pior cenário possível, contra os alemães. No dia da partida, a chamada da Folha evidenciava essa realidade, ao dizer que aquilo não passaria de “treino de rotina” para os europeus. “Meus atletas são esforçados, conscientes de sua responsabilidade. Vão entrar dando o melhor que têm. Se perderem, será apenas pela supremacia técnica do adversário”, pontuou Vidinić. O treinador tinha razão. O Marrocos chegou a abrir o placar, com Houmane Jarir. No entanto, Uwe Seeler e Gerd Müller reverteram o placar, confirmando um modesto 2 a 1.


Era possível sonhar com a classificação? Tudo dependeria do desempenho demonstrado contra o Peru, no segundo desafio. “Chegamos para aprender e agora estamos pensando seriamente nas quartas de finais”, alegou Vidinić. Conforme foi noticiado, Didi até alterou seus planos depois de ver o potencial marroquino contra a Alemanha. A astúcia do Folha Seca prevaleceu. Em 10 minutos, os peruanos liquidaram a partida. Cubillas abriu o placar aos 65 minutos e fechou aos 75. Nesse intervalo, Roberto Challe também marcou: 3 a 0.

Com duas vitórias, Peru e Alemanha já se sabiam classificados quando se enfrentaram na última rodada, importante apenas para definir quem ficaria com a liderança. Para o Marrocos, o jogo contra os búlgaros não passava de cumprimento de protocolo. Nas palavras do Jornal do Brasil, os países tentavam apenas evitar a última colocação. 

Um empate sem graça, 1 a 1, com protestos contra a arbitragem, enviou os dois de volta para casa. Embora o Marrocos tenha ficado com a lanterna, a grande decepção do grupo foi de fato a performance da Bulgária, que carregava alguma expectativa. Seu próprio treinador, Stefan Bozhkov, reconheceria isso.


Era o fim da primeira participação africana em Mundiais, em 36 anos. O sabor não era, de todo, amargo. Afinal, o Marrocos perdera pela margem mínima contra a Alemanha, sustara a pressão peruana por grande parte do confronto, e somara seu primeiro ponto ante os búlgaros.

Continuidade nos anos seguintes


Dizer que o Marrocos construiu uma trajetória de sucesso após a viagem ao México seria forçado — o que não quer dizer que não houve progressos. Mesmo diante de um cenário de crise interna grave, com o Marrocos sofrendo tentativas de golpe de estado em 1971 e 72, os Leões do Atlas disputaram a Copa Africana de Nações pela primeira vez, em 72. A participação não seria memorável, com o país sequer superando a fase de grupos, batido por Zaire e Congo.

O período só não foi mais melancólico porque, nos Jogos Olímpicos de 1972, em Munique, o Marrocos chegou a avançar de fase, ficando atrás da Alemanha Ocidental e à frente de Malásia e Estados Unidos, no Grupo A. Contudo, um segundo estágio contra Polônia, União Soviética e Dinamarca se revelaria pesado demais para os africanos.

Melhor sorte não alcançaria o país no ano seguinte. Embora tenha avançado até a última fase das eliminatórias para a Copa do Mundo de 1974, brigando com Zâmbia e Zaire, após uma derrota pesada diante do último, o país tentou anular a partida. O encontro teria sido desmedidamente violento, com Faras se lesionando. Nada feito. Os marroquinos, então, negaram-se a jogar a partida fatal e ficaram fora do Mundial — também se ausentaram da CAN, em 74.

O retorno aos palcos internacionais aconteceria apenas na edição de 1976 da competição continental. Comandado pelo romeno Virgil Mărdărescu há dois anos, o país finalmente sorriu. Aliás, um pouco antes do início da copa já havia razões para otimismo. Mais maduro, Faras fora eleito o melhor jogador africano no ano anterior. Depois de alcançar a liderança do Grupo B, suplantando Nigéria, Sudão e o antigo algoz Zaire, o Marrocos venceu Egito e Nigéria, tendo um empate ante Guiné sido suficiente para alçar os Leões do Atlas ao lugar mais alto do pódio. Eram, enfim, campeões.


Para essa geração, a conquista africana foi o ato final. Quando o Marrocos retornou às Copas do Mundo, em 1986, o time já era completamente diferente. Ali, novas histórias já haviam sido escritas por outros países do continente, como a Tunísia, em 1978, Camarões e Argélia, em 1982. No entanto, o peso histórico da viagem marroquina ao México se manteve. Na altura, a África, enquanto continente, começara a (re)construir seu espaço no futebol de elite.

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