Em 1986, a Bélgica surpreendeu até parar no imparável

Os êxitos da seleção belga são escassos. Na verdade, exceto pelo Ouro Olímpico obtido como anfitriões, nos Jogos da Antuérpia em 1920, os belgas não conquistaram nada. Bateram na trave algumas vezes. Por exemplo, na Copa do Mundo de 1986. No calor escaldante do México, a Bélgica apresentou uma geração de ótimos jogadores. Era o cume do trabalho do treinador Guy Thys, contratado uma década antes. O único porém teve nome e sobrenome: Diego Maradona.

Belgica 1986
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


O trabalho começou 10 anos antes


Foi uma agradável coincidência que o trabalho de reconstrução da seleção belga tenha partido da Antuérpia. Os bons augúrios olímpicos se materializaram no Royal Antwerp. Embora tradicional, o time não se aproximava da conquista do campeonato nacional há quase 20 anos. Campanhas de metade de baixo da tabela e anos na segunda divisão marcavam o passado recente do clube, no início dos anos 1970. Até a chegada de Guy Thys.

Embora natural da Antuérpia, o comandante não atuara no principal clube local, durante a carreira de atleta. Pelo contrário, dera os primeiros chutes no rival regional, o Beerschot. A idolatria na equipe lhe renderia passagens de sucesso por Standard Liège e Cercle Brugge, até pendurar as chuteiras. Seria em Bruges, inclusive, que daria os primeiros passos como treinador. Em pouco tempo, Thys se notabilizaria por acessos e duros trabalhos de permanência. Seria assim no Beveren e no Union Saint-Gilloise.

No entanto, após algumas temporadas se aguentando, o USG não resistiu e voltou à segunda divisão. Para o treinador, foi o fim de uma missão de quatro temporadas e o início do trabalho mais decisivo de sua carreira. Contratado pelo Royal Antwerp em 1973, Thys alcançou resultados imediatos. Nos primeiros dois anos, conduziu O Grande Velho a vice-campeonatos, ficando atrás de Anderlecht e Molenbeek. Duas vezes, liderou o time na Copa da Uefa, a primeira parando no Ajax, no critério do gol marcado fora de casa; a segunda sendo freado pelos poloneses do Śląsk Wrocław, depois de eliminar o Aston Villa.

Guy Thys Belgium
Foto: RTBF/Arte: O Futebólogo

Ante esse cenário, a campanha de 11º lugar, em 1975-76, não desabonaria o chefe. O teto do time não era alto. Viu-se com naturalidade a contratação de Guy Thys para o comando da seleção belga, ainda em 1976. Ele substituiu o famoso Raymond Goethals, que começara bem seu trabalho, classificando os Diabos Vermelhos ao Mundial de 1970 e à Euro de 1972. Porém, falhara nas edições seguintes de ambas as competições.

Também não se podia esperar que o técnico do momento no país, o austríaco Ernst Happel, aceitasse a missão. Ele não apenas fora o último campeão belga, também chegara a uma decisão europeia. Em 1975-76, o Club Brugge foi finalista vencido da Copa da Uefa, batido pelo Liverpool. A projeção de Happel sugeria que o próximo passo seria um desafio maior do que aquele que a Bélgica oferecia. Assim, coube a Thys trabalhar.

Uma equipe em desenvolvimento


O futebol belga dava bons sinais na segunda metade dos anos 1970. Continentalmente, o Brugge bateria na trave uma vez mais. Em 1977-78, voltaria a cair aos pés do Liverpool, mas agora na decisão da Copa dos Campeões. Vindo de Bruxelas, o Anderlecht alcançaria feitos mais atraentes. Na Recopa Europeia de 1976, venceria o West Ham na decisão; no ano seguinte ficaria com o vice; e, em 1978, retomaria a coroa, batendo o Austria Viena. Apesar disso, os resultados não viriam imediatamente para a seleção.

Dividindo o grupo com Islândia, Irlanda do Norte e a rival Holanda, veria a Oranje avançar sozinha nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1978. O troco dos belgas não tardaria a ser entregue, com juros e correção. O time estava em formação, mas o processo logo renderia os frutos esperados. A primeira demonstração viria na Euro 1980. Em uma disputa apertada com a Áustria, que estivera no Mundial passado, os Diabos Vermelhos puderam fazer o check in rumo à Itália.

Enquanto a rival Holanda sucumbiu no grupo com Alemanha e Tchecoslováquia, a Bélgica liderou outro, pesadíssimo — empatando com Inglaterra e Itália, e superando a Espanha na conta do chá. Figuras cruciais para o desenvolvimento do trabalho de Thys começavam a se destacar. Entre elas, o goleiro Jean-Marie Pfaff, o possante lateral Eric Gerets, o motorzinho René Vandereycken, e o grandalhão Jan Ceulemans, no ataque. A solidez defensiva garantia o suporte para os talentosos homens de frente fazerem o seu serviço na área adversária.


A liderança no grupo levou a Bélgica à final. No Stadio Olimpico, em Roma, um detalhe, uma cabeçada, separou os Diabos Vermelhos da taça. Numa rara falha de Pfaff, o centroavante Horst Hrubesch abriu o marcador no início da partida. De pênalti, Vandereycken empataria, deslocando o goleiro Harald Schumacher. No entanto, a dois minutos do fim, Hrubesch completaria um corner cobrado por Karl-Heinz Rummenigge — com Pfaff, outra vez, tomando uma decisão ruim, ao dividir e perder a jogada com o goleador germânico.

“Não teríamos chegado à prorrogação, seria demais. Estava muito quente naquele dia e me lembro de estar tão cansado depois do jogo que foi difícil levantar o troféu”, falou Hrubesch ao site da UEFA.


A construção de Guy Thys continuava em marcha. Se por um lado a Euro 1980 fora o ponto final para jogadores como o capitão Julien Cools, por outro abrira espaço para jovens talentos, como Franky Vercauteren. Nas eliminatórias para a Copa de 1982, a Bélgica mostraria, mais uma vez, seu valor. Embora muito mais prolífica, a França de Michel Platini acabaria com a segunda colocação do Grupo 2, enquanto a Holanda sequer se classificaria. Eficientes, os belgas voltavam ao maior palco do futebol, após duas ausências.

Rivalidade ou disparidade?


Depois de avançar de fase, outra vez liderando seu grupo, a Bélgica não foi páreo para União Soviética e Polônia e sucumbiu no Mundial da Espanha. Não se tratava de uma participação ruim, mas era preciso melhorar. Os comandados de Guy Thys voltariam ao alto nível dois anos depois. Na Euro 1984, outras duas figuras jovens, e essenciais para o que se veria adiante, seriam incorporadas. Nico Claesen tinha cinco internacionalizações quando foi à França; Enzo Scifo, duas. A renovação continuava.

Porém, enfrentar a melhor versão da França oitentista, com o Carré Magique — Luis Fernández, Jean Tigana, Alain Giresse e, ele, Michel Platini — na ponta dos cascos, além da Dinamarca, de Frank Arnesen, Allan Simonsen, Søren Lerby, Michael Laudrup e Preben Elkjær, seria difícil. Os belgas venceriam apenas a Iugoslávia, caindo na fase de grupos. 

Não havia tempo a perder, as eliminatórias para a Copa do Mundo de 1986 estavam no horizonte.

Enzo Scifo Belgium 1984
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

A Bélgica entrou em uma briga pessoal com a Polônia e perdeu. Empatadas em pontos, as nações viram os gols marcados definirem quem avançaria diretamente ao Mundial. E os belgas nem podiam reclamar, perderam para a fraca Albânia. Então, disputaram um play-off classificatório. Contra quem? A Holanda. Ausente nas últimas duas competições internacionais importantes, e já apresentando os jovens Frank Rijkaard e Ruud Gullit, estava mais uma vez no caminho belga. O Dérbi dos Países Baixos era convocado a definir uma vaga na Copa.

Em Bruxelas, um petardo de Vercauteren, sem chances de defesa para o holandês Hans van Breukelen, colocou a Bélgica em vantagem na eliminatória. Porém, com 72 minutos do jogo de volta, em Roterdã, o placar indicava vitória por 2 a 0 para a Oranje. Cinco minutos antes do fim, Georges Grün cabecearia para o gol holandês, completando cruzamento de Gerets e carimbando o passaporte belga para o Mundial. Nem mesmo o escândalo protagonizado pelo Standard Liège freava o avanço do futebol belga.


“O cabeceio de Grün faz parte do folclore belga; o fato de ter eliminado seus rivais locais da Copa do Mundo o tornando muito mais doce”, narrou o Guardian.

 Mais uma vez, a Bélgica estava dentro e a Holanda fora.


Aos trancos e barrancos


Quando os grupos da Copa do Mundo foram sorteados, a Bélgica novamente não pôde se queixar. No Grupo B, enfrentaria possivelmente o cabeça de chave menos qualificado. Ainda que fosse o anfitrião, o México não era comparável a equipes como Brasil, Argentina, Itália ou Alemanha Ocidental. Além disso, por mais que tivesse vencido a Copa América de 1979, o Paraguai não era uma potência sul-americana e menos ainda era o Iraque no cenário asiático — mesmo vindo do título da Copa das Nações Árabes, no ano anterior.

Ocorre que ninguém lidava tão bem com o calor mexicano quanto o México, sem falar no apoio massivo das arquibancadas. Além disso, o Paraguai se revelaria uma surpresa. Apenas os iraquianos jogariam o futebol esperado, insuficiente. A Bélgica, agora com três zagueiros, penou. Perdeu para os donos da casa em pleno sol de meio-dia na Cidade do México, empatou com os Guaranis e venceu apenas os Leões da Mesopotâmia. Foi salva pela melhor campanha entre os terceiros colocados, avançando às oitavas de finais, em que o show começou.


No que foi um dos jogos apoteóticos da Copa do Mundo, os homens de Guy Thys superaram o Exército Vermelho, em um encontro de sete gols. A União Soviética, treinada pelo mítico Valeriy Lobanovskiy, apostava em uma base de jogadores do Dínamo de Kiev, como Oleksandr Zavarov, Pavlo Yakovenko, Ivan Yaremchuk e Igor Belanov, que, ao final do ano, receberia o Ballon d’Or. Veterano, Oleg Blokhin estava no banco 

Os kievanos vinham do título da Recopa, contra o Atlético de Madrid. Já os belgas ainda tinham que lidar com as perdas de Erwin Vandenbergh e Vandereycken, que tinham voltado para casa, machucados. 

Debaixo do sol também escaldante de León, Belanov marcou duas vezes, igualadas por Scifo e Ceulemans (em lances polêmicos de impedimento). A partida foi para a prorrogação. Stéphane Demol e Claesen colocaram a Bélgica em vantagem, mas os soviéticos não desistiram. Belanov completaria um triplete. “Foram 120 minutos de emoção. E a URSS se foi”, manchetou o Jornal do Brasil


O próximo adversário dos Diabos Vermelhos era outra equipe encarnada, a Espanha. Furiosamente, a Roja despachara a sensação da competição até então: 5 a 1, ante a Dinamarca.

É certo não ter sido um clássico. “O time belga deve a façanha, nunca antes conseguida em Copas do Mundo, sobretudo ao goleiro Pfaff, que com uma série de defesas arrojadas e muito sentido de colocação evitou durante 120 minutos de pressão espanhola que o adversário tivesse a vantagem", narrou o JB. No primeiro tempo, Ceulemans completou cruzamento de Vercauteren, inaugurando o marcador. Na etapa fatal, Señor acertou um potente chute de média distância, empatando. O jogo foi à prorrogação e aos pênaltis. Apenas o espanhol Eloy Olaya perdeu. A Bélgica estava na semifinal.


Nem Deus pararia o D10S


Aquela já era a melhor participação da Bélgica em Copas do Mundo. O cansaço de jogar duas prorrogações duras pesava. Entretanto, é difícil imaginar qualquer circunstância em que Guy Thys comandasse seus jogadores à final. Para isso, precisaria parar Maradona. Era uma missão virtualmente impossível. 

No primeiro gol da Argentina, dois marcadores e o goleiro Pfaff não impediram que o craque alcançasse o passe de Héctor Enrique. No segundo, foram quatro belgas tentando pará-lo — mais o arqueiro. O 2 a 0 tinha a assinatura do único jogador imparável no planeta naquela altura.

“Se a Bélgica tivesse Maradona, estaria na final. Ele é de fato o melhor jogador do mundo. Qualquer time que tenha Maradona leva uma enorme vantagem. Sozinho, ninguém consegue pará-lo. A Copa para nós acabou aqui e acho que fizemos bom papel”, disse o treinador belga, como registrado pelo Jornal do Brasil.


Os Diabos Vermelhos ainda enfrentariam a França na disputa pelo terceiro lugar. Embora os discursos sugerissem desinteresse, assim como a escalação dos Bleus, recheada de reservas, viu-se mais um grande jogo. Ceulemans inauguraria o placar, em um ataque rápido; Jean-Marc Ferreri empataria. Jean-Pierre Papin daria a virada aos gauleses; apenas para Claesen voltar a igualar a contagem. Mais uma vez, prorrogação.

As pernas frescas seriam fundamentais outra vez no calor do meio-dia, agora em Puebla. Uma bola facilmente afastável com o físico em dia, mas que ricocheteu na área belga tal qual um jogo de pinball, acabaria nos pés de Bernard Genghini, era o 3 a 2 francês. Minutos depois, uma jogada individual do próprio Genghini provocaria um pênalti, convertido por Manuel Amoros. Era o fim para a Bélgica, quarta colocada. 

“Nós fomos uma geração de ouro no México, em 1986”, afirmaria Pfaff ao UOL.


O resultado foi visto com bons olhos na Bélgica, no fim das contas uma nação que à época não tinha nem 10 milhões de habitantes. A seleção competira, fora longe e mostrara bom futebol, com uma defesa muito segura na maior parte do tempo, e um ataque cheio de criatividade, rapidez e poder de decisão. Não obstante, pouco seria construído a partir dali.

O time perderia a vaga na Euro 1988 para uma surpreendente Irlanda, liderada pelo inglês Jack Charlton. No ano seguinte, Thys anunciaria sua aposentadoria. Voltaria às atividades para chefiar os belgas na Copa do Mundo de 1990, mas permaneceria pouco tempo após a queda para a Inglaterra, nas oitavas de finais, retirando-se em definitivo.

Aos poucos, a Bélgica foi se afastando cada vez mais do pódio. Disputava a maior parte das competições importantes, mas sem se impor. Os jovens de 1986 não evoluíram como esperado e os jogadores que participaram das renovações seguintes não tinham talento suficiente. Seria apenas com o despontar da geração de Eden Hazard e Kevin De Bruyne que o cenário esportivo mundial voltaria a distinguir a Bélgica no futebol de seleções.

Comentários