Uma zebra singular: a Grécia da Euro 2004

Em 2001, a seleção grega estava entregue às traças. Por mais que não fosse expectável uma classificação ao Mundial do ano seguinte — Alemanha e Inglaterra dividiam grupo com os gregos nas eliminatórias —, os resultados eram muito ruins, incluindo derrota para a lanterna Albânia. A situação condizia com o histórico helênico no futebol, mas havia crença naquela geração. Foi preciso ter paciência e apostar no know-how de quem tinha um passado vitorioso no esporte. À sua maneira, o grupo acabaria alçado ao panteão.

Greece 2004 Euro
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Pragmatismo à alemã


Após uma derrota por 2 a 0 diante da Inglaterra, o treinador Vasilios Daniil, que comandava a Grécia desde março de 1999, pediu demissão. A seleção não tinha perspectivas de classificação à Copa do Mundo de 2002; fazia sentido iniciar, antes mesmo do fim das qualificatórias mundialistas, um novo trabalho. A missão do líder era clara: classificar a Ethniki à Euro 2004, o próximo desafio. Para tanto, tornava-se fundamental escolher bem.

A Federação Helênica de Futebol selecionou cinco nomes como os favoritos ao posto. Todos tinham experiência no mais alto nível do esporte. Depois de o inglês Terry Venables desistir de sua entrevista, os gregos foram atrás do alemão Otto Rehhagel. Cientes das dificuldades que o trabalho imporia ao germânico, ofertaram um vultuoso bônus em caso de classificação ao próximo campeonato europeu. Prontamente, a proposta foi aceita. O treinador assinou contrato de dois anos, recebendo um salário de 350 mil dólares.

O espanhol Javier Clemente, além dos italianos Nevio Scala e Marco Tardelli, também considerados, sequer chegaram a ser abordados.

Era a primeira vez que Rehhagel comandava uma seleção. No entanto, costumava liderar azarões em sagas vitoriosas. Sob sua direção, o Werder Bremen finalizara um jejum de mais de 20 anos sem vencer a Bundesliga — além de ter alcançado outras glórias. Além disso, seu último trabalho empolgara. O chefe resgatara o Kaiserslautern na segunda divisão e o conduzira ao título da primeira em apenas duas temporadas. Nos vinte anos que antecederam a chegada à Grécia, Otto treinara apenas três equipes.

Otto Rehhagel Werder Bremen
Foto: imago/Arte: O Futebólogo

O técnico sabia vencer sem o melhor material humano. Inclusive, em sua única empreitada com maior margem de investimento, sua personalidade se chocou com os jogadores e o ambiente encontrado. Depois de 14 anos no Werder, Otto Rehhagel foi uma aposta fracassada do Bayern de Munique. No entanto, não se podia duvidar de que, dominando o vestiário, o alemão podia potencializar os resultados de uma equipe — ainda que por meios um tanto quanto pragmáticos.

Como narra Jonathan Wilson, em A Pirâmide Invertida, “estilos antigos podem ser reintroduzidos em novos contextos, especialmente no formato curto dos torneios importantes”. Semelhantes termos foram usados por Michael Cox, em Entre Linhas: “O melhor exemplo no futebol moderno do jogo clássico alemão foi [...] quando Otto Rehhagel, representante da velha guarda, empregou o antigo sistema ao comandar o time grego, em contraste absoluto com as outras quinze seleções”. Tais descrições refletem, precisamente, o que se viu.

Em 1991-92, o Werder Bremen superou o Monaco, treinado por Arsène Wenger, conquistando a Recopa Europeia. No Estádio da Luz, Rehhagel alinhou seu time no tradicional 3-5-2, com um líbero e uma defesa pautada na marcação homem a homem. Seis anos depois, o Kaiserslautern campeão alemão atuava da mesma forma, com Miroslav Kadlec fazendo o líbero. Esse time superaria o Bayern, treinado por Giovanni Trapattoni, nos dois turnos da Bundesliga.

Otto Rehhagel Kaiserslautern
Foto: imago/Arte: O Futebólogo

Ainda que o futebol germânico vivesse um dilema, com ideias progressistas em choque com o tradicional modelo, Otto tinha convicção em seu plano e a Grécia não possuía a qualidade técnica necessária para jogar de uma forma mais sofisticada.

Havia bons indícios no futebol de clubes


No primeiro jogo após a contratação do novo treinador, o interino Nikolaos Christidis alinhou um 4-3-3 diante da Rússia, treinada por Oleg Romantsev. O amistoso disputado em Moscou terminaria 0 a 0. A estreia de Otto aconteceria no mês seguinte e da pior forma possível. Em Helsinki, ainda com um esquema tático ofensivo, os helênicos foram destruídos pela Finlândia, em grande atuação de Mikael Forssell e Jari Litmanen: 5 a 1.

Já para o jogo seguinte, o último das eliminatórias, a defesa foi totalmente reconstruída. Patsatzoglou, Dabizas, Vokolos, Konstantinidis, Fyssas formaram uma linha de cinco na retaguarda grega. No meio, Theo Zagorakis, Georgios Karagounis e Michalis Kasapis davam ainda mais sustentação à equipe, com Angelos Charisteas e Demis Nikolaidis buscando uma chance de marcar no ataque. Era, além de tudo, um time com uma média de altura altíssima, preparada para um jogo físico e aéreo.

Em Old Trafford, a Inglaterra penou. Charisteas colocou a Grécia em vantagem, complicando a classificação dos Three Lions ao Mundial. O empate de Teddy Sheringham não serviu de grande coisa, tendo em vista que, um minuto depois, Nikolaidis fez mais um para os visitantes. Apenas uma cobrança de falta típica de David Beckham salvaria os ingleses — já nos acréscimos. O 2 a 2 em solo britânico era a primeira façanha de Otto Rehhagel no comando grego.


A bem da verdade, nos últimos anos, a performance dos clubes gregos sugeria que aquela geração podia repetir os feitos de 1980, quando a Ethniki disputou seu único torneio continental. Em 1995-96, o Panathinaikos chegara às semifinais da Liga dos Campeões, superado pelo Ajax. O Trevo forneceria jogadores como Giannis Goumas, Angelos Basinas e Georgios Georgiadis ao selecionado nacional. No banco, figurava outro nome conhecido, o do goleiro Antonios Nikopolidis. E, ganhando maturidade emprestado ao Apollon, estava Giorgos Karagounis.

No ano seguinte, o AEK caminharia às quartas da Recopa, superado pelo Paris Saint-Germain, eventual vice-campeão. Os atenienses repetiriam o feito em 1997-98, dessa vez batidos pelo Lokomotiv Moscou. Daquele time sairiam Nikolaidis e Kasapis. Por outro lado, na temporada subsequente, seria o Olympiacos o destaque, avançando às quartas da Liga dos Campeões — e sucumbindo perante a Juventus pela diferença mínima de um gol, 3 a 2. Esse time tinha Stelios Giannakopoulos.


Além de os times gregos competirem internacionalmente, cada vez mais jogadores vinham sendo transferidos para os grandes centros do futebol europeu — sem necessariamente passar pelos gigantes nacionais. Charisteas, por exemplo, trocaria o Aris pelo Werder Bremen. Também no time macedônio surgiria o zagueiro Traianos Dellas, que jogaria na Inglaterra e na Itália.

O momento era singular para o futebol helênico, embora a seleção seguisse longe dos grandes palcos. Seu maior destaque internacional seguia sendo o papel de coadjuvante no último gol de Diego Maradona em Mundiais, também o derradeiro pela Argentina — no que era a única aparição grega em Copas, em 1994.


Voltar aos grandes palcos, não importa como


O objetivo da Grécia era voltar a disputar uma competição de prestígio. A Euro 2004 representava a próxima chance. Mas não seria fácil. Os helênicos dividiriam o Grupo 6 com Espanha, Ucrânia, Armênia e Irlanda do Norte, a única equipe que não representava perigo. Se a ideia era beirar a perfeição nos jogos como mandante, a Ethniki fraquejou já na estreia. Contra a Espanha, Raúl González (contando com falha de Dabizas) e Juan Carlos Valerón sentenciaram os gregos à primeira derrota, em Atenas.

Apesar disso, como noticiou o Mundo Deportivo, o treinador helênico estava trabalhando. “O alemão Otto Rehhagel mostrou que havia estudado bem a Espanha, ao colocar homens em cima de Xavi e Valerón”. A marcação homem a homem tomava forma. No entanto, tampouco o jogo seguinte alentaria os gregos: derrota para Ucrânia, também por 2 a 0, em Kiev. Era preciso reagir. Dali em diante, os homens de Rehhagel não voltariam a perder. Mais importante: não sofreriam nenhum gol.

“A primeira coisa que ele nos ensinou foi que a seleção tinha que vir primeiro, Rehhagel insistiu que todo o resto vinha depois da seleção", falou Fyssas à ESPN.


Os dois gols que Nikolaidis anotou diante da Armênia trouxeram a Grécia de volta para a disputa por um lugar na Euro. Semelhante situação ocorreria na rodada seguinte, quando a equipe visitou os norte-irlandeses. No entanto, dessa vez foi Charisteas quem balançou as redes duas vezes. O jogo mais difícil estava por vir. Em Zaragoza, uma das casas mais tradicionais da seleção espanhola, Otto Rehhagel teria que provar toda a sua competência. Provou.

O solitário gol de Giannakopoulos bastou para decretar: a Grécia estava vivíssima na luta para carimbar o passaporte para Portugal. “A Grécia aproveitou sua única chance e defendeu seu gol com a faca nos dentes [...] Não havia como quebrar o muro e assim uma derrota histórica foi consumada”, analisaram os catalães do citado Mundo Deportivo. Faltavam três jogos, em que os helênicos receberiam Ucrânia e Irlanda do Norte, visitando os armênios.

1 a 0 foi sinônimo de goleada. Em uma altura em que a Europa começava a odiar o estilo grego, Charisteas resgatou três pontos aos 86 minutos da partida contra os ucranianos. O jogo teve componentes dramáticos, com Andriy Shevchenko e Serhiy Rebrov perdendo chances e o goleiro Oleksandr Shovkovskyi defendendo um pênalti. Ali, a Ethniki assumiu a liderança do Grupo 6, diante do empate da Espanha contra os norte-irlandeses. Mais duas vitórias marginais colocaram os gregos na Euro. Com a primeira colocação.


Por que não sonhar?


O entusiasmo durou pouco. Em 30 de novembro de 2003, foram sorteados os grupos da competição continental. Conquanto tenha alcançado a liderança nas qualificatórias, os potes do sorteio eram determinados pelo coeficiente da UEFA. Sem surpresa, a Grécia acabou no Pote 4. Assim, foi conduzida a um grupo com o anfitrião, Portugal, uma Espanha sedenta por revanche e a Rússia, de que nunca se sabe bem o que esperar. Era o grupo da morte.

Apesar disso, a Grécia não tinha nada a perder. Cumprira seu objetivo inicial: jogaria a Euro 2004. Qualquer decorrência disso se trataria de um lucro inesperado e celebrado.

Os comandados de Rehhagel estrearam em um dos cenários mais hostis imagináveis. O recém-inaugurado Estádio do Dragão aguardava ansioso pela geração mais talentosa de portugueses, desde o time de Eusébio e Mário Coluna. Não obstante, o que se viu foi Karagounis acertar um belo chute de fora da área e, mais tarde, Basinas converter um pênalti. A cabeçada de Cristiano Ronaldo, no apagar das luzes, não aplacaria a decepção lusitana.


Aparentemente, Otto surpreendera a todos. A Grécia fora a campo com um esquema interpretado como 4-3-3, defendendo-se com a solidez já habitual, mas explorando contragolpes com coragem. “Acho que todos os gregos devem estar contentes. Amanhã deviam colocar bandeiras na janela [...] A estratégia que adotamos foi extremamente bem sucedida. Qual foi? Já a esqueci, pois já estou pensando no próximo jogo”, falou o treinador, como registrou o Público.

No reencontro com a Espanha, a Ethniki replicou sua estratégia, segurando o ímpeto da Fúria. Fernando Morientes abriu o placar, mas Charisteas empatou na etapa final. O grupo estava aberto. Uma vitória contra os russos classificaria a Grécia. Só que ela não veio. Superada pelos ibéricos, a Rússia conseguiu uma improvável vitória ante os helênicos. Ainda assim, diante do triunfo lusitano contra os espanhóis, a Grécia avançou às quartas de finais. O que já era histórico.

A França aguardava os gregos e vinha impulsionada pelo título da Copa das Confederações do ano anterior. Tinha Zinedine Zidane e Thierry Henry, embora o treinador Jacques Santini não conseguisse extrair deles, enquanto dupla, seu melhor futebol. Os Bleus também não contariam com o lesionado Patrick Vieira. Melhor para a Grécia, que usou a cabeça. No segundo tempo, Zagorakis fintou Bixente Lizarazu com maestria e cruzou para Charisteas acertar um cabeceio dos mais potentes, sem chances para o goleiro Fabien Barthez. Outra vez, o 1 a 0 era goleada.

Nas semifinais, as duas sensações da competição se encontraram. Os helênicos entravam nessa condição pelos resultados, já a República Tcheca vinha jogando futebol de alto nível, com Pavel Nedved, Tomás Rosicky, Karel Poborsky, Milan Baros e Jan Koller em grande fase. 

Apesar disso, impassível, a defesa grega seguiu suportando as agressões adversárias. Os tchecos perderiam Nedved, lesionado e substituído por Vladimir Smicer; Baros e Koller desperdiçariam oportunidades; e, no gol de prata, outra vez de cabeça, a Grécia avançaria à decisão. Dellas seria o homem mais celebrado no Porto.


Épico


Depois de superar a Holanda, Portugal era o outro finalista. Ali, gregos e lusitanos entravam em campo para o que era, até então, a partida mais importante da história de suas seleções. O Estádio da Luz foi convocado a sediar aquele encontro. Entre chances perdidas de parte a parte, uma teve destino diverso. No segundo tempo, Basinas cobrou um corner na cabeça de Charisteas. O esférico saiu da cabeça grega para o fundo da baliza do goleiro Ricardo.

O treinador Luiz Felipe Scolari tentou trazer os portugueses de volta. Apostou em Rui Costa, depois em Nuno Gomes. Nada feito. À moda antiga, a Grécia alcançou o impossível. O treinador da Ethniki, mais uma vez, mostrou que até o menos cotado dos azarões tem chances em um esporte como o futebol. “Otto Rehhagel utilizou um líbero com três marcadores individuais e adicionou solidez à equipe com um meio de campo de cinco homens, contando com apenas um atacante”, pontuou Jonathan Wilson, no citado A Pirâmide Invertida.


Desacostumadas a enfrentar equipes com esse estilo, as maiores potências europeias falharam na leitura das táticas gregas. Embora parecesse em alguns momentos, o time não atuava em 4-3-3, mas em 4-5-1 e, ocasionalmente, 5-4-1. Antiquado? Sim. Aborrecido? Para grande parte do público, também. Eficiente? Sem dúvidas. Zagorakis acabaria dando ainda mais cor ao triunfo azul, após ser escolhido o craque do torneio.

“Os gregos fizeram história hoje. É uma sensação fantástica! Foi um feito pouco usual para o futebol grego e especialmente para o futebol europeu. A equipe jogou muito bom futebol. Aproveitamos bem as nossas oportunidades. O adversário era tecnicamente melhor do que nós”, comentou Rehhagel, como reproduzido pelo Público.

Charisteas Euro 2004 Portugal Grécia
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Os dois anos inicialmente combinados entre a Federação Helênica de Futebol e Otto Rehhagel se transformaram em nove. O alemão não conseguiria levar a Grécia à Copa do Mundo de 2006, mas a conduziria à Euro 2008 e, mais tarde, ao Mundial de 2010. Após o certame, idolatrado e reconhecido como o maior treinador da história do país, deixaria o comando. Com ele na casamata, foram 106 partidas, 53 vitórias, 23 empates e 30 derrotas.

Curiosamente, acabaria substituído por um português: Fernando Santos — também conhecido pelo pragmatismo.

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