O ressurgimento do Olympique de Marselha nos anos 1960

Em 2018, os alemães da empresa Statista constataram que 29% dos franceses interessados em futebol torciam pelo Olympique de Marselha. Na altura, apenas o Paris Saint-Germain o superava. Portanto, não é difícil imaginar que, nos anos 1960, antes de o clube da capital ser fundado, os marselheses correspondessem à maior massa de torcedores de futebol da França. O cenário, entretanto, era catastrófico. Desde a década de 40, o título nacional não era alcançado. Pior: os Phocéens estavam na segunda divisão.

Magnusson Leclerc Skoblar
Foto: Cartophilia/Arte: O Futebólogo


Chega Marcel Leclerc


Era a temporada 1958-59 e, pela primeira vez, o Marseille regredia à Ligue 2. A campanha, horrorosa, não dava margem para qualquer reclamação. O clube terminou o Campeonato Francês na lanterna. Em 38 rodadas, concedeu 84 gols. Foram 21 derrotas. Nove pontos o separaram da saída da zona de rebaixamento. A queda foi incontestável. Outra prova de que aquele desfecho não surpreendera viria da indesejada permanência marselhesa na segundona por três temporadas consecutivas.

Nem mesmo o acesso obtido em 1961-62 (apenas com a quarta colocação, atrás de Grenoble, Valenciennes e Bordeaux) apaziguaria o ambiente. O segundo descenso foi imediato e tão implacável quanto o primeiro. Outra vez, o Olympique terminou o ano em último. Novamente, perdeu 21 partidas, sofrendo agora 75 gols. Seriam mais três temporadas no segundo escalão francês. E, quando o novo acesso foi consumado, mudanças profundas já estavam em curso no clube.

Marcel Leclerc receberia o reconhecimento do Marseille, mediante a alcunha de “O Reconstrutor”. Com ele, a sorte marselhesa mudaria, com o clube retomando um caminho seguro. Mas quem exatamente foi este senhor? Nascido em 1921, tornar-se-ia um dos presidentes mais importantes da história dos Phocéens. Mas, antes disso, confirmaria-se um pioneiro em sua área de atuação.

Leclerc Marseille
Foto: Icon Sport/Arte: O Futebólogo

Como jornalista, Leclerc fundou o primeiro semanário francês dedicado a programas de televisão: o Télé-Magazine. Em pouco tempo, já era proprietário da Press Croisistes, do L'Economiste e do But!. 

Apesar desse sucesso, que lhe permitiu construir riqueza, seu grande e insuspeito amor era devotado ao Marseille. Em 1965, enquanto cambaleava pelos caminhos estreitos e pedregosos da segunda divisão, flertando com a falência, o clube viu o periodista-empresário assumir sua presidência. A descrença no clube era patente. As últimas partidas antes da mudança foram acompanhadas por 434 e 758 espectadores, respectivamente.

Além de ter investido recursos próprios para renovar o elenco (oito jogadores acabariam contratados) e propiciar condições de acesso à elite, outra medida imediata de Cleric seria um tanto arrojada. Em rota de colisão com a Administração de Marselha, o mandatário forçou a mão do prefeito Gaston Defferre. Fazia anos que o Olympique atuava no Stade Vélodrome, inaugurado em 1937. No entanto, ele pertencia à municipalidade e Leclerc acreditava serem absurdas as condições de uso exigidas.

O presidente do OM demandava da prefeitura o pagamento de um subsídio anual fixo, a redução de impostos e o fim do aluguel pago pelo clube ao município. Inicialmente, sua pretensão foi recusada. O resultado? Os Phocéens disputaram a temporada 1965-66 no modesto Stade de l'Huveaune. A casa podia ser menor, mas acolhia melhor os torcedores, que participaram diretamente de uma de suas renovações, nos anos 1920. E, além disso, mantinha o pulso do mandatário forte.

O acesso viria. Com ele, seriam atendidas as condições de retorno ao Vélodrome. Em cerca de um ano, Leclerc recalculara a rota do Olympique.

stade de l'huveaune
Foto: Deconhecido/Arte: O Futebólogo


Reformulação constante e Josip Skoblar


A continuidade do trabalho de Leclerc passava diretamente pela permanência na Ligue 1. Fazia muito tempo desde a última vez em que o Marseille passara temporadas seguidas no primeiro escalão do futebol francês. Para alcançar esse objetivo, o clube não poderia deixar de reforçar o plantel. Assim, em 1966-67, começaria a ser forjada a relação dos marselheses com um dos mais impressionantes artilheiros da história do futebol europeu.

Josip Skoblar tinha 25 anos quando chegou, por empréstimo, ao OM. O croata iniciara a carreira no Zadar, mas fizera fama com a camisa do OFK Beograd. Na altura, já acumulava importante capital de experiências, tendo viajado ao Chile, em 1962, para a disputa da Copa do Mundo — contribuindo com um gol, na vitória da Iugoslávia diante do Uruguai. No entanto, o potencial brutal do bomber ainda não era conhecido. Era uma questão de pouco tempo.

Importante notar que se tratava de um negócio de ocasião. Por um desacerto na parte burocrática, o Hannover 96, oficial comprador de Skoblar, não conseguira inscrever o centroavante para a disputa da temporada alemã. O repasse ao Marseille foi a solução encontrada para que o eslavo pudesse atuar. Em meia temporada na Provença, ele fez bem mais do que apenas atuar. Em 16 jogos do Campeonato Francês, fez 13 gols; em três aparições pela Copa da França, deixou sua marca quatro vezes. Não por acaso, seria apelidado de Monsieur Goal.


Mas aquela relação estava destinada a um distanciamento — antes de uma reaproximação. Vencido o empréstimo, Skoblar retornou ao Hannover passando duas e meia proveitosas temporadas na Bundesliga.

Nesse ínterim, contudo, o Marseille não ficou parado. Leclerc não era um homem passivo, mas o exato oposto. Se por um lado trouxera Josip para comandar o ataque, por outro a defesa seria o setor mais reforçado em 1966-67, formando a base dos anos seguintes. Jean Djorkaeff (o pai de Youri), Marcel Artelesa, Jules Zvunka, Jean-Pierre Destrumelle reconstruíram a retaguarda dos Phocéens. Os resultados foram positivos. O clube terminou a temporada em nono lugar e com o quinto melhor recorde defensivo.

Resolvida a questão lá atrás, o OM continuou sua reconstrução e, no ano seguinte, privilegiou o setor criativo, apesar de também chegar a um acordo com o Nîmes pela contratação de Jacky Novi, defensor das equipes de base da França. Para a linha ofensiva, buscou Joseph Bonnel, no Valenciennes, e Laurent Robuschi, no Bordeaux. Ambos disputaram a Copa do Mundo de 1966. 

Os resultados seguiram melhorando, como o quarto lugar no nacional não deixa mentir. Mas não era o momento de baixar os braços.

Em 1968-69, o jejum de conquistas do Marseille já completara duas décadas. Contra essa realidade, Lecrerc quebrou a banca e fez uma promessa inusitada. Pouco depois de ir à Juventus buscar os dribles do ponta direita Roger Magnusson — Le Garrincha Suédois — esclareceu que “se ganharmos a Copa, me jogo, vestido, nas águas do Le Vieux Port”.


Vitórias, enfim


A Copa da França traria o ponto de virada tão buscado por Marcel Leclerc. Depois de suplantar um dos predecessores daquele que viria a ser seu grande rival, o Stade Saint-Germain, o Marseille bateu o Angers, com gols de Magnusson e Bonnel, acessando a decisão, contra o Bordeaux.

Dirigido por Mario Zatelli, ex-jogador do clube que retornara aos bancos de reserva para a segunda de quatro passagens, o Marseille teve sorte e competência. Contou com um gol contra e, no último minuto do tempo regulamentar, sacramentou a conquista com o camaronês Joseph Yegba Maya. Como prometido, o presidente do clube se jogou no Porto Velho marselhês — jura não cumprida pressagia anos de azar, o que Leclerc não podia conceber. No campeonato, o time fez uma campanha sem sobressaltos, terminando em sétimo.


Em 1969-70, mais progressos seriam feitos. Estreando na Recopa Europeia, o Olympique não iria longe, eliminando os tchecos do Dukla Praga, mas caindo diante dos iugoslavos do Dinamo Zagreb. Também não renovaria o título da Copa, superado, já na primeira fase, pelo Nîmes. Porém, no Campeonato Francês a história seria outra. O Marseille foi o vice-campeão, ficando atrás apenas do até então imparável Saint-Étienne.

Faltava pouco para as ambições do presidente do OM serem alcançadas e, para isso, ousadia seria necessária. Yegba Maya, ídolo do clube e vice-artilheiro no último campeonato francês, despedir-se-ia dos Phocéens ao final da temporada, trocado por Daniel Leclercq, defensor do Valenciennes.

No entanto, a direção já estava segura quanto às capacidades de seu ataque. No meio da temporada vencida, depois de uma briga duríssima com o Hannover, assegurara o retorno de Skoblar. E o homem-gol chegou mostrando que seu cartão de visitas, apresentado anos antes, seguia atual. Foram 17 gols nas primeiras 18 partidas. Isso sem falar na aquisição de Didier Couécou, ex-Bordeaux e outro internacional francês.

“Quando eu o assistia [Skoblar] diante do gol, pensava no que ele fazia. Gol de chapa com a canhota, com a parte de fora do pé direito, cabeçada… Ele tinha feito de tudo antes mesmo que eu imaginasse. Marcava todas as vezes, de todas as formas, e em frações de segundo”, teria dito o ídolo nacional francês Just Fontaine, como recupera a Trivela.

Se Leclerc seria recordado por ressuscitar o Marseille, Skoblar marcaria seu nome como o símbolo do sucesso. Em 1970-71, ele estabeleceu um recorde artilheiro intocado desde então. Autor de 44 tentos no Campeonato Francês, devolveu o mais aguardado sorriso aos rostos marselheses e recebeu a Chuteira de Ouro da Europa. Enfim, o Saint-Étienne era superado e o título nacional voltava para Marselha (embora nos confrontos diretos, os Verts tenham levado a melhor, com um empate e uma vitória). 

Se no início da década anterior eram as derrotas que marcavam o dia a dia do Olympique, a alvorada dos anos 1970 trouxe de volta as vitórias. Aquilo não seria uma festa isolada.

Apesar da eliminação para o Ajax na Copa dos Campeões, o Marseille renovou o título francês em 1971-72. Mais do que isso, alcançou a inédita dobradinha. Skoblar foi comedido. Na Ligue 1, anotou somente 30 gols, repetindo a artilharia do ano anterior. Na decisão da Copa da França, ante o Bastia, seria dele o golpe de misericórdia, garantindo o triunfo por 2 a 1. Consumado o doblete, os jogadores desfilariam em carro aberto por mais de seis horas.


Esse time era ainda mais forte do que o do ano anterior, fazendo valer o orçamento de cinco milhões de francos. Sem lidar com perdas significativas, acrescentou a qualidade de Gilbert Gress, ídolo do Strasbourg que retornava à França após um período no Stuttgart, e, mais significativamente, do líbero Bernard Bosquier e do goleiro Georges Carnus, que além de ídolos nacionais, provinham do Saint-Étienne, enfraquecendo um rival direto. Apesar disso, seria a aversão ao sossego o carrasco do time.

Doloroso fim de ciclo


Em 1972, havia gente incomodada com Leclerc no seio da direção marselhesa. Nos últimos anos, o mandatário, por vezes, agira de modo impulsivo e autoritário. Exemplo claro foram algumas trocas de treinador um tanto arbitrárias e sem sequer ouvir os membros do conselho do clube. Lucien Leduc, por exemplo, fora demitido com o OM na liderança do Campeonato Francês, sete pontos à frente do segundo colocado.

No entanto, o caldo começou a entornar mesmo antes do doblete ser garantido. Em março, Marcel escolheu Eugène Steppé, do Anderlecht, como diretor esportivo. Outra vez, sem pedir o aval de ninguém. Ali se instauraram insurgências reais. O conselho exigiu explicações e acabou ganhando no braço de ferro — barrando a chegada do diretor. Outrora adorado, Leclerc começava a pisar em ovos, o que era incompatível com sua personalidade e não tardaria a levar a uma ruptura.


Na sequência, em nova decisão colegiada, passou-se a demandar que todos os cheques do clube fossem assinados por dois membros da diretoria, não apenas pelo presidente. Era o início de especulações de desvio de dinheiro para as empresas de Leclerc — o que nunca foi provado.

Outra polêmica levantada à época foi além do ambiente interno do clube. O futebol francês permitia a utilização de apenas dois estrangeiros. Para o Marseille, isso significava a escalação frequente de Skoblar e Magnusson. Em tese, Leclerc veria essa situação como um atraso. Se as possibilidades financeiras do clube permitiam a contratação de mais talento de fora, por que não buscá-lo? Afinal, ainda havia uma fronteira a ser rompida: a do sucesso continental.

Marseille 1972
Foto: Deconhecido/Arte: O Futebólogo

Ele queria contratar o húngaro Zoltán Varga, do Hertha. Essa situação teria levado o Olympique a um desgaste irreversível perante as lideranças do futebol nacional, pressionando ainda mais o conselho do clube a tomar providências. Porém, também isto ficou no terreno do rumor.

Certa foi a demissão voluntária (apenas no papel) de Leclerc. Em 20 de julho de 1972, o mandatário apresentou sua carta ao prefeito Gaston Defferre. Dali em diante, embora agindo com aparente grandeza, o Marseille foi regredindo, paulatinamente. Para o ano, foram contratados nomes como o do zagueiro Marius Trésor e do atacante Salif Keita. Mas nenhum título foi alcançado, embora Skoblar tenha seguido como artilheiro do campeonato.

Skoblar e Magnusson deixariam o time pouco depois, em 1974, abrindo espaço para as chegadas dos brasileiros Jairzinho e Paulo Cézar Caju. Dois negócios caros e que não deram os resultados esperados, embora as performances tenham sido boas. No caso de Jairzinho, a passagem também seria marcada por uma equivocada suspensão de um ano por um suposto, e não demonstrado, ataque ao árbitro de uma partida de copa, ante o PSG. 

“Quando Jairzinho voltou de lesão, fez uma dupla incrível com Paulo César. Estávamos em 13º-14º lugares no Natal e depois tivemos uma fabulosa segunda parte da temporada. Terminamos em segundo”, contou o antigo defensor Victor Zvunka, como registrado pelo OM4Ever.


Também o craque argentino Héctor Yazalde seria buscado, um pouco depois, tendo boa prestação, mas não logrando levar o Olympique a um novo título francês. Os reforços eram de primeira. As performances, não raro, boas. Mas as glórias, com uma exceção (o título da Copa da França de 1975-76), não chegavam. No fim da década, quem chegou foi a conta.

Em 1979-80, outra vez, o Marseille foi rebaixado. Como no passado, inquestionavelmente, perdendo 23 partidas. Seriam quatro duras temporadas na segundona. Somente sob a direção de outro polêmico dirigente o clube se reencontraria com a grandeza: Bernard Tapie. E, como se sabe, os bons ventos persistiram apenas até outra tempestade cair sobre Marselha.

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