O sonho invicto do México em 1986

A história é contada pelo que foi, não pelo que poderia — ou deveria — ter sido. Era junho de 1974 quando a FIFA determinou que, doze anos mais tarde, a Copa do Mundo seria sediada na Colômbia. A decisão seguia a lógica verificada desde 1958, com a sede do Mundial alternando entre mãos europeias e latino-americanas. Originalmente, seria uma competição para 16 equipes. No entanto, já no princípio dos anos 1980, ante perturbações socioeconômicas e políticas, e diante do inchaço da Copa, agora uma disputa entre 24 candidatos, a Colômbia anunciou que não poderia receber o certame. O que fazer?

Mexico 1986
Foto: Sport Photo Gallery/Arte: O Futebólogo


Problemas políticos e naturais


Canadá, Estados Unidos e México se apresentaram como opções viáveis para a FIFA. No entanto, a organização, sob acusações de agir mais política do que tecnicamente, sequer se dispôs a visitar os dois primeiros competidores, indicando que as propostas eram superficiais e se desviavam dos objetivos e propósitos da Copa do Mundo. Em 21 de maio de 1983, a FIFA decidiu, oficialmente: o México sediaria o certame de 1986, assumindo-se o primeiro país a receber um segundo Mundial.

A definição não seria de fácil digestão, como Georges Schwartz, um dos oficiais responsáveis pela candidatura canadense, diria: “O que é surpreendente é que a FIFA apresentou objeções aos dois países rejeitados e quase dois meses para agir. Se tivessem visitado os EUA e o Canadá, como uma questão procedimental, e depois esperado até 20 de maio e escolhido o México, tudo teria sido feito pelos canais apropriados e ninguém poderia se opor”, relatou ao NY Times.

Entre as questões que se apresentavam como obstáculo ao êxito mexicano, a principal era econômica. Segundo relatou o periódico estadunidense, a dívida externa do país latino era de aproximadamente 85 bilhões de dólares, e a taxa de inflação em 1982 atingira 98,8%. Ainda que não precisasse construir novos estádios, o país reformaria e ampliaria alguns, o que era fato. Porém, a despeito de toda a argumentação contrária, a decisão foi unânime, o que surpreendeu até mesmo o presidente da Federação Mexicana de Futebol, Rafael del Castillo.

A Copa do Mundo que deveria ter sido sediada na Colômbia, e desapontou EUA e Canadá, ficaria a cargo do México. Ponto. “Não há tempo para um novo adiamento da nossa decisão”, asseguraria João Havelange. A questão sairia da pauta por um tempo — até o dia 19 de setembro de 1985. Um terremoto de 7,8 graus na escala Richter atingiu a Cidade do México, deixando milhares de mortos, além de desaparecidos e desabrigados. O abalo sísmico era o maior registrado no planeta em 10 anos. A situação era periclitante, seguindo-se, inclusive, maremotos.

Folha Terremoto 1985 México
Reprodução: Folha

A preocupação com o Mundial foi imediata. No dia seguinte à tragédia, a Folha reportou que “o comitê organizador da Copa disse que os estádios não foram afetados e que o campeonato mundial não será afetado”. De fato, apesar da apreensão, aquele Mundial não mudaria, outra vez, de mãos. No entanto, os jogadores mexicanos passaram a ter uma missão extra: “Não fomos afetados pessoalmente, mas vimos como nosso trabalho trazer um pouco de felicidade a todas as pessoas que sofreram”, relatou o craque Hugo Sánchez, em entrevista aos ingleses da FourFourTwo.

A experiência de 1970 demonstrara o alcance da paixão mexicana pelo futebol. A média de público de 50.127 pessoas por jogo era então a segunda maior da história, marginalmente superada pela de 1966. E, desapontando quem pensava que aquilo fazia parte de um movimento ascendente, somente em 1994, a marca do México seria batida. Não bastasse, ali também seria registrado o que era o segundo maior público da história, com 108.192 presentes para o confronto entre El Tri e a Bélgica.

A Copa do Mundo, de fato, parecia um bom paliativo para aplacar as dores do povo mexicano.


O trabalho de Bora Milutinovic


A seleção mexicana convivia com dúvidas. Em 1978, terminara a Copa do Mundo em último lugar. Dividindo o grupo com Alemanha Ocidental, Polônia e Peru, perdeu todos os jogos, concedendo inaceitáveis 12 gols. Era um time jovem e sem experiência internacional. Os mais velhos tinham somente 28 anos e o recordista de aparições, Antonio de la Torre, somava parcos 41 jogos.

Quase nada da geração treinada por José Antonio Roca seria aproveitado, mesmo porque o México sequer se classificaria para a Copa do Mundo de 1982, após três trocas de treinador, envolvendo José Moncebáez, Gustavo Peña e o retorno de Raúl Cárdenas, o chefe no Mundial de 1970.

O time de 1986 teria somente dois remanescentes do último grupo mundialista, o atacante Cristóbal Ortega e o grande astro da companhia, Hugo Sánchez, já no Real Madrid. Além de ser a principal referência técnica do time, era o único jogador que atuava no exterior. Isso permitiu ao México a melhor preparação de sua história. Como país-sede, prescindiu da disputa das eliminatórias, usando todas as datas possíveis para integrar os jogadores, vindos de América, Atlante, Chivas, Cruz Azul, Monterrey, Pumas, Tecos e Tigres.


Para liderar o escrete nacional, a Federação Mexicana escolheu um nome que conhecia bem a realidade local. Fazia mais de 10 anos desde que o iugoslavo Bora Milutinovic se mudara para a América do Norte. Foi no Pumas que o antigo meio-campista encerrou a carreira de atleta e iniciou a de treinador. No comando dos Felinos, conquistou títulos como o Campeonato Mexicano e a Copa dos Campeões da Concacaf. Se alguém estava a par do que de melhor acontecia no país, esse era ele, mesmo porque boa parte da reserva de talento nacional vinha de seu ex-time.

“Tive a satisfação de ter até oito jogadores da seleção que começaram a ser profissionais comigo no Pumas: Manuel Negrete, Hugo Sánchez, Luis Flores, Miguel España, Raúl Servín, Rafael Amador e Félix Cruz. Além de Olaf Heredia, que também jogou alguns minutos no campeonato”, contou Bora, ao Coaches Voice.

Era tão evidente a concentração na preparação para o Mundial que o país abriu mão da disputa da Copa Ouro de 1985 (que também serviria de eliminatórias mundialistas). As expectativas eram positivas. Entre o início de 1985 e o começo da Copa do Mundo, El Tri disputou 20 amistosos. Somou 12 triunfos, cinco empates e apenas três derrotas — contra Suíça, Alemanha Oriental e Inglaterra. Entre os países superados estavam Polônia, Alemanha Ocidental, Hungria, URSS e Uruguai.

“Ele [Bora] era muito experiente e me ajudou muito. Foi meu treinador por três temporadas no Pumas, então nos conhecíamos bem e eu gostava da maneira como ele trabalhava. Ele prestava atenção aos detalhes em campo e se interessava por seus jogadores”, comentou Hugo Sánchez, relato acompanhado por Javier Aguirre. “Fomos muito bem treinados pelo Bora e tínhamos uma equipe com muita personalidade [...] Talvez não fôssemos os melhores jogadores de futebol do país, mas éramos líderes em nossos times”, registrou o MARCA.

Bora Milutinovic Hugo Sánchez
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

O sorteio foi generoso, mas os mexicanos fizeram sua parte


Como anfitrião, o México era cabeça de chave. A situação o beneficiava, com o sorteio revelando Paraguai, Iraque e Bélgica como os adversários no Grupo B. Dificilmente El Tri poderia encontrar confrontos mais acessíveis, mesmo que a solidez defensiva dos guaranis fosse uma realidade e que os belgas alinhassem jogadores da qualidade de Enzo Scifo e Jan Ceulemans. Era um grupo bem aberto, com possibilidades para todos.

Outros fatores entrariam em ação, além disso. O calor do verão mexicano e a pulsação das arquibancadas eram condicionantes externos importantes, mas não se podia desconsiderar a estratégia escolhida por Bora: “Jogamos com cinco meio-campistas”, pontuou Aguirre. A empolgação do público era importante, mas não contaminava a equipe, que apostava em táticas sólidas, bolas paradas e na qualidade de Hugo Sánchez.

No Estádio Azteca, diante de cerca de 110 mil pessoas, e em pleno meio-dia, El Tri começou sua jornada diante da Bélgica. O placar seria aberto ainda no primeiro tempo. O zagueiro Fernando Quirarte completaria, com um cabeceio potente e cruzado, bola alçada desde a intermediária, superando o goleiro Jean-Marie Pfaff. Outra bola parada permitiria aos mexicanos aumentar a vantagem; uma cobrança de escanteio desviada no primeiro pau chegaria mansa para a conclusão de Sánchez: 2 a 0. Antes do fim da etapa inicial, após um lateral longo, direto na área latina, Erwin Vandenbergh daria números finais ao jogo, 2 a 1.


“Havia um carnaval marcado para a noite, mas que começou logo na saída do estádio e se prolongou pelas avenidas que conduzem ao centro da cidade”, relatou a Folha. O próximo desafio seria diante dos paraguaios, moralizados desde o título da Copa América de 1979 e que tinham uma geração marcada por talentos como o do goleiro Gato Fernández, do meia Romerito e do atacante Roberto Cabañas. Com alguma frustração, o placar aberto por Luis Flores foi igualado no finzinho da partida, por Romerito: 1 a 1.

Sánchez desperdiçaria uma penalidade. “Não gostava de perder pênaltis, é claro, mas foi bom de certa forma porque mostrou a todos que eu era apenas humano”. O desfecho seria contra o Iraque, o azarão que, embora viesse de duas derrotas, as vendera caro, pela margem mínima de um gol. A equipe era treinada pelo brasileiro Evaristo de Macedo. Outra vez, Quirarte decidiria o jogo, após lançamento longo. Agora, entretanto, fuzilando o goleiro Fatah Nsaief, com um petardo de perna direita. Letal e suficiente.


Depois de fracassar retumbantemente em 1978 e de se ausentar quatro anos depois, o México não apenas avançava aos mata-matas como também liderava o grupo. A outra notícia positiva daquele momento, que deixou Bora duplamente feliz, foi o nascimento de Darinka, sua filha. A euforia era total.

Invencível


O avanço com a primeira posição do grupo rendeu ao México a possibilidade de atuar contra a terceira colocada do Grupo A, Bulgária. A equipe eslava ainda não contava com as estrelas de Hristo Stoichkov, Krasimir Balakov, Emil Kostadinov e Yordan Letchkov, mas era um time sólido, que tinha três zagueiros e se defendia bem. Às vésperas do encontro, o Jornal do Brasil questionava os rivais, relatando que “as duas seleções terão de mudar sensivelmente o estilo de jogo que apresentaram até agora, baseado na defesa”.

Se faltava talento, ele apareceu. Primeiro, na figura dos goleiros Pablo Larios e Borislav Mihaylov, que frearam as investidas dos ataques rivais repetidas vezes. Depois, com Manuel Negrete. Ele obrigou Mihaylov a buscar uma bola no ângulo e, pouco depois, acertou um voleio magistral da entrada da área búlgara — um movimento típico de seu colega, Sánchez. Era o 1 a 0. Na segunda etapa, após cobrança de escanteio, o defensor Raúl Servín garantiria a vitória mexicana, 2 a 0.


Nas quartas de finais, o adversário seria a forte Alemanha Ocidental. “Teremos muitas vantagens, a começar pela torcida. Foi justamente em Monterrey que iniciamos, em 1983, a preparação para esta Copa e a torcida vai influir decisivamente. O calor será outro aliado nosso e adversário dos alemães. E, psicologicamente, creio que também estamos em vantagem. Chegar às quartas de finais já foi uma vitória para o México. Nada temos a perder”, esclareceu Bora, em coletiva após a vitória contra a Bulgária, como reportou o JB.

O time mexicano podia não empolgar, mas avançava. Ainda assim, era importante observar que, diferentemente do que vinha sendo a tônica de até então, o jogo ante os germânicos ocorreria às 16h, sob um sol menos tórrido, e com arquibancadas menos ferventes, dada a menor capacidade do Estadio Universitario, no comparativo com o Azteca. Além disso, a Alemanha era uma potência. Com Franz Beckenbauer no banco, alinhava peças como o goleiro Harald Schumacher, Lothar Matthaus, Felix Magath e Karl-Heinz Rummenigge. Nada disso pressionou os donos da casa.

O jogo não foi uma exibição. No primeiro tempo, com mais vigor físico, a superioridade técnica alemã se fez presente. Nos 45 minutos finais, o quadro se inverteu, especialmente após a expulsão de Thomas Berthold. Já na prorrogação, ninguém mostrou muita ambição e o cartão vermelho apresentado a Aguirre aumentou ainda mais a ânsia pelo fim do encontro. Prevaleceu o 0 a 0 e se apresentaram os pênaltis. Ali, o sonho mexicano acabou.

“Me senti impotente. Não consegui cobrar porque tive cãibras nas duas pernas depois de jogar uma partida muito difícil com um calor de 40 graus. Eu era um dos batedores de pênaltis designados e foi horrível não poder fazer minha parte. A força mental e a experiência dos alemães fizeram a diferença no desempate. Eles estavam mais preparados para situações como aquela”, lamentou Sánchez. Na marca da cal, Quirarte e Servín, outrora heróis, perderam suas cobranças e abreviaram a participação mexicana no Mundial. Todos os alemães converteram suas chances.


Sem perder, o México concluiria a Copa do Mundo com uma honrosa e celebrada sexta colocação. No entanto, a alegria não duraria muito. Em 1987, Bora seguiria para o San Lorenzo, colocando um hiato na relação com o país adotivo. Um ano depois, um escândalo de falsificação de documentos se abateria sobre El Tri, que preparava a convocação de atletas com idade adulterada para a disputa do Mundial sub-20 de 1989. Os mexicanos seriam banidos da Copa do Mundo da Itália.

Quatro anos depois, em 1994, já não restava muito do time de 1986. Aquela geração, ausente em 1982 e 1990, ficaria marcada por um só ato — primeiramente polêmico, depois quente e barulhento e, por fim, histórico.

Comentários

  1. Ai, que inveja do México, por ele ter empatado em 0 x 0 no tempo normal e na prorrogação com a Alemanha (é verdade que perdeu por 4 x 1 nos pênaltis), ao contrário de nós, brasileiros, que perdemos da mesma Alemanha por incríveis 7 x 1 e já no tempo normal (já não bastasse o México ter tido os teotihuacanos, os maias e os astecas e ter uma comida e uma bebida mais saborosas, e atrizes televisivas ainda mais bonitas, e o Brasil não ter tido nenhuma civilização indígena avançada ou sofisticada, e ter uma comida e uma bebida menos saborosas [a não ser os churrasco e vinho gaúchos e a cachaça], e atrizes televisivas ligeiramente menos bonitas).

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