Copa do Mundo de 1970: o apogeu futebolístico de Israel

Assim como o próprio Estado de Israel, o futebol da nação que concentra a única maioria judia no mundo viveu uma realidade conflituosa, ao longo do século XX. Em parte, isso explica o porquê de, apesar da insuspeita paixão do israelense pelo futebol, a seleção nacional não ter se tornado referente no Oriente Médio. Não obstante, a única participação do país em Mundiais se tornaria motivo de orgulho, pela qualidade de alguns jogadores e os resultados obtidos. Ela era resultado de muito estudo, disciplina e dedicação.

Israel World Cup 1970
Foto: Popperfoto via Getty Images/Arte: O Futebólogo


Nasce o Estado de Israel


No dia 14 de maio de 1948, a vida de todo o Oriente Médio começou a mudar. “A Terra de Israel foi o lugar de nascimento do povo judeu, onde se formou a sua identidade espiritual, religiosa e nacional. Aqui, os judeus realizaram sua independência e criaram uma cultura nacional de significação universal”, introduzia o texto da proclamação da República de Israel. Trechos da carta foram reproduzidos na Folha da Manhã, que dedicava a manchete ao acontecimento internacional.

“Exilados da Palestina, os judeus permaneceram fiéis a ela, em todos os países para onde se dispersaram [...] O massacre nazista, que vitimou milhões de judeus na Europa, provou, de novo, a necessidade urgente de restabelecer o Estado judaico e resolver-se o problema dos sem pátria semitas”, continuava a composição.

Já no dia seguinte, o mundo começava a reconhecer o estado que ali surgia. Os Estados Unidos seriam os primeiros a fazê-lo, seguidos pela Guatemala. Rapidamente, nações como Rússia, Suécia e Brasil os acompanhariam. No entanto, o acontecimento começou a gerar sangrentas consequências de imediato.

Formação Estado de Israel Folha da Manhã
Arquivo: Folha de São Paulo

No próprio dia 15, a Folha da Noite trazia a notícia de que Tel-Aviv fora bombardeada, segundo a American Broadcasting Company, por “aviões inimigos”. Eventos como esse se tornariam comuns, em toda a região.

“A principal força de perturbação [no Oriente Médio] era Israel, onde os colonos judeus construíram um Estado judeu maior do que o que fora previsto sob a partilha britânica [...] Israel também se transformou na mais formidável potência militar da região e adquiriu armas nucleares, mas não conseguiu estabelecer uma base estável de relações com os Estados vizinhos”, narra Eric Hobsbawm, em Era dos Extremos.

Tal contexto influenciaria os caminhos percorridos pela seleção israelense de futebol.

Problemas geopolíticos com repercussões esportivas


O território onde se estabeleceu o Estado de Israel integrava os quadros da FIFA desde 1929, sob o Mandato Britânico da Palestina. Disputara, pois, as eliminatórias para os Mundiais de 1934 e 38, primeiro entre asiáticos e africanos; depois, contra os europeus Hungria e Grécia. Tal indefinição acerca da confederação continental a que pertenceria persistiria com a independência. 

A partir de 1954, integraria a Confederação Asiática de Futebol. Como se esperava, as nações árabes e islâmicas boicotaram a presença israelense; algumas consequências seriam insólitas. Em 1958, por exemplo, diante da recusa dos demais países a enfrentar Israel, a seleção se classificaria diretamente para o Mundial, sem jogar uma partida sequer. Primeiro Turquia, depois Egito e Indonésia, e, por último, o Sudão deixariam as eliminatórias. O caminho estava aberto para os israelenses.

Contudo, a FIFA não admitiria a classificação de uma equipe que, efetivamente, não disputara um lugar na Copa do Mundo. Portanto, instituiu um playoff contra o País de Gales, segundo colocado de seu grupo nas eliminatórias europeias e escolhido em sorteio. Os galeses venceriam as duas partidas e Israel teria de aguardar mais alguns anos por uma chance de alcançar o mais elevado palco do futebol internacional.


Nas duas eliminatórias seguintes, para evitar a repetição do que ocorrera em 1958, Israel lutaria pela classificação na zona europeia. Os resultados esclareceriam que, esportivamente, o quadro azul e branco não poderia permanecer ali. Em 1962, os israelenses perderam a vaga para a Itália, sofrendo com a imposição de um implacável placar agregado de 10 a 2. Quatro anos depois, num grupo com Bélgica e Bulgária, perderiam todos os jogos.

Outros fatos importantes marcaram as qualificatórias de 1966. Indignado por não possuir sequer uma vaga direta ao Mundial, o continente africano boicotou o certame sediado na Inglaterra — a consequência tardia seria a atribuição de um lugar específico para a África na Copa do Mundo de 1970. Com isso, Israel foi alocado nas eliminatórias de Ásia e Oceania. No Grupo 2, enfrentaria Nova Zelândia e Coreia do Norte.


Os norte-coreanos vinham de uma participação brilhante no Mundial inglês. Todavia, os Chollima se recusariam a atuar em solo israelense. Os países nunca possuíram relações diplomáticas, com os peninsulares não reconhecendo a independência de Israel. Este estado, por sua parte, reconhecia na Coreia do Sul o único governo legítimo de toda a Coreia. Ao longo dos anos, diversos focos de animosidade entre os dois países surgiriam. 

A consequência da divergência seria a exclusão da Coreia do Norte. Com duas vitórias diante dos neozelandeses, Israel ficava próximo de se classificar para o Mundial.

Sucesso pelas mãos de Emmanuel Scheffer


Judeu nascido na Alemanha, era filho de pais poloneses, concebidos em território que, mais tarde, pertenceria à Ucrânia. Viveria, ainda, na França e, com a Segunda Guerra Mundial, na Polônia, a Ucrânia, o Azerbaijão e o Cazaquistão — até retornar ao território polaco, com o fim do conflito, pouco mais de 20 anos nas costas e já tendo perdido todo o contato com a família. Na Breslávia, iniciaria uma trajetória longa no futebol. Seu nome era Emmanuel Scheffer.

A estadia no território de origem de seus pais duraria pouco. Convocado a prestar o serviço militar, Scheffer passaria por outro périplo, transitando por Tchecoslováquia, Áustria e Itália, até se tornar mais um filho da diáspora judaica a retornar ao Oriente Médio. Era o início da década de 1950, quando chegou a Israel, concluindo a Aliá. Enquanto tentava se reestruturar ganhando um dinheiro como mecânico, voltou-se para o futebol. Primeiro, representou o Hapoel Haifa; adiante, o Hapoel Kfar Saba, chegando a defender o país.

Era 1957, quando sua carreira foi abreviada por uma lesão e ele optou pela trajetória de treinador.

Emmanuel Scheffer Israel
Foto: IMAGO/Horstmüller/Arte: O Futebólogo

Em constante ascensão, assumiria o comando da seleção israelense pouco mais de uma década depois, em 1968. O sobrevivente do holocausto, forçadamente cidadão do mundo, chegava ao ápice. 

Não tinha sido um período fácil, contudo. Para avançar, Scheffer retornaria ao território germânico. Em Colônia, a Deutsche Sporthochschule (Escola Superior de Desportos da Alemanha) abria espaço para jovens judeus. Lá, estudaria e conheceria um grande amigo e mentor, Hennes Weisweiler, mais tarde icônico treinador de Borussia Mönchengladbach, Barcelona e Colônia.

A simpatia de Weisweiler, conta-se, surgiria do desejo de, como alemão, oferecer algum tipo de reparação ao povo judeu, por menor que fosse. Na escola, era o sucessor de Sepp Herberger, campeão mundial com a Alemanha em 1954. Mas aquele movimento, além dos motivos óbvios, estava longe de ser fácil para Emmanuel. A Alemanha Ocidental apenas estabeleceria relações diplomáticas com Israel em 1965. Scheffer já saíra de lá.

Na volta para o Oriente Médio, o treinador empreendeu algo inesperado. Para aplicar seus conhecimentos teóricos, assumiu a seleção israelense sub-19. Durante quatro anos, entre 1964 e 67, venceu a Copa da Ásia da categoria. Uma nova geração de atletas surgia, entre os quais Mordechai Spiegler e Giora Spiegel. “A maioria dos jogadores era como eu: saíam do exército e eram estudantes, ou tinham um emprego além do futebol. Basicamente, trabalhávamos de manhã e jogávamos futebol à tarde”, contou o último à revista K.

Scheffer Israeli Players
Foto: IMAGO/Horstmüller/Arte: O Futebólogo

“Muitas vezes, discordei dele [Scheffer], mas ele estava simplesmente aplicando o know-how tático e gerencial que aprendera na Alemanha. Quando não estava fazendo os novatos correrem como loucos, era o nutricionista de plantão, analisando o estilo de vida e a alimentação de seus jogadores. Ele era hipertenso, sempre desconfiado”, continuaria Spiegel.

Era impossível fugir da conclusão de que o treinador mudara os caminhos do futebol israelense. O profissionalismo chegara ao país. “Foi um inovador e insistiu em fazer três treinos por dia, uma exigência que duvido que os jogadores atuais aceitassem. Foi uma honra ter sido treinado por ele”, relatou o meio-campista Itzhak Shum, ao site da UEFA.

Das Olimpíadas à Copa do Mundo


Após os sucessos no escalão sub-20, Israel começaria a mostrar nível internacional nos Jogos Olímpicos de 1968. O elenco escolhido para a viagem à Cidade do México era basicamente o mesmo que disputaria as Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1970.

Alocados no Grupo C, com Hungria, Gana e El Salvador, os Azuis e Brancos passaram bem por seus desafios. A derrota esperada diante dos Magiares, efetivamente, aconteceu, mas os israelenses venceram os outros desafios e avançaram de fase. Nas quartas de finais, pararem na Bulgária, mas apenas no cara ou coroa, após empate por 1 a 1. Curiosamente, húngaros e búlgaros fariam a final do certame.

De volta às partidas qualificatórias para o Mundial de 1970, Israel teve uma vantagem na partida decisiva contra a Austrália. Fazia mais de dois meses desde os jogos contra a Nova Zelândia. Por outro lado, os aussies precisaram de um encontro extra ante a Rodésia para chegarem à decisão. E tudo isso aconteceu em Moçambique, já no fim de novembro de 1969. Quatro dias depois, tendo passado por Lisboa, Roma e Atenas até chegar a Tel-Aviv, cansados, os oceânicos perdiam a partida de ida, 1 a 0. Na volta, um empate por 1 a 1, classificaria Israel. Era a última equipe qualificada.

Israel vai à Copa do Mundo de 1970 Folha
Arquivo: Folha de São Paulo

“Ninguém acreditava nas possibilidades da Coreia do Norte na Inglaterra, mas ela se classificou para as quartas de final, e também nós poderemos causar surpresas. Mas o importante é que estaremos no México e muitas equipes famosas terão de ficar em casa”, disse Scheffer após a classificação, como registrou a Folha.

Apesar da alegria esperada com a classificação, é improvável que algum israelense tenha ficado animado ao saber quem seriam os primeiros adversários de seu selecionado. Para evitar problemas políticos, Israel e Marrocos não ocupariam o mesmo espaço. No Grupo 2, ao lado dos Azuis e Brancos, estariam Itália, Suécia e Uruguai. Dois campeões e uma finalista. Não havia como duvidar do fato de que Israel estava, sim, em uma Copa do Mundo.

“Fomos ao México e nosso coração estremeceu. Éramos jogadores anônimos que viam as estrelas da Copa do Mundo, comandadas pelo grande Pelé, em ação apenas nos cinemas, em diários ou em 8mm filme preto e branco”, disse o lateral-esquerdo Shmuel Rosenthal, como registrou o site oficial da FIFA.

 


Afinal, as favas não estavam contadas


Se o calor não era tão intenso quanto aquele registrado nas partidas que aconteciam ao meio-dia, o encontro do fim da tarde do dia 2 de junho de 1970, em Puebla, teve na chuva intensa um obstáculo. O Uruguai de Ladislao Mazurkiewicz, Pedro Rocha (que se lesionaria) e Luis Cubilla venceria Israel, com um gol em cada tempo. Na etapa inicial, Ildo Maneiro iria às redes; no segundo, Juan Mujica.

Não seria, porém, um triunfo convincente. O Globo ressaltaria “a facilidade que não houve”, ainda que registrasse que os israelenses tinham pouco mais do que garra: “Inexperientes em todos os setores, até na distribuição em campo, devem agora estar carregando o seu goleiro [Itzhak] Vissoker nos ombros, pois ele foi o salvador da pátria [...] não há dúvida de que o treinador Scheffer tem afirmado sempre que veio para aprender e esperamos que consiga mesmo”.


O segundo confronto seria diante dos suecos, cinco dias mais tarde. Agora, em Toluca; dessa vez, no temido meio-dia. “Sempre que vejo as imagens do gol na televisão, fico com medo de que o goleiro pegue a bola. Felizmente ele não fez isso até hoje”, comentou Spiegler, em entrevista ao site oficial da Federação Alemã de Futebol. Israel marcaria um gol. Mais do que isso, somaria um ponto, o primeiro de sua história. Ao garantir um empate por 1 a 1, tornava-se a primeira grande surpresa do Mundial de 1970.

Na altura, Scheffer já acreditava que, se não fosse a chuva da estreia, podia até mesmo ter conseguido um resultado melhor ante a Celeste

Faltava mais um jogo, contra a Itália. “Os italianos têm que defender uma posição; nós temos apenas que recolher ensinamentos. Entretanto, uma coisa não precisamos aprender: vontade de vencer. Isso não é surpresa para ninguém, pois está em todos os amadores”, falaria o treinador no pós-jogo ante os suecos.


Novamente em Toluca, mas agora às 16h, o time de Spiegel, Spiegler, Rosenthal e Vissoker subia ao gramado para encontrar uma potência. Comandada por Ferruccio Valcareggi, a Nazionale escalava gente como Giacinto Facchetti, Sandro Mazzola, Roberto Boninsegna e Gigi Riva. A vitória estava certa? Parecia provável, mas o empate italiano contra o Uruguai suscitara dúvidas quanto ao potencial da Azzurra.

O jogo seria lembrado pela qualidade demonstrada pelas equipes. Apesar disso, o zero não deixaria o marcador. A tristeza do treinador Emmanuel Scheffer seria apenas uma: “Se voltar a jogar contra o Uruguai, não perderei de maneira alguma. A chuva e o gramado escorregadio derrotaram mais a minha equipe do que os uruguaios e contra eles não seria empate como foi contra Suécia e Itália, seria vitória”.


Com confiança, a seleção israelense deixava o México. Scheffer logo deixaria o comando, com sua missão cumprida. Para alguns jogadores, a competição abriria portas. Giora Spiegel faria carreira na França, militando em Strasbourg e Lyon; Mordechai Spiegler também, por Paris FC e PSG — antes de partir para o NY Cosmos, onde se juntou a David Primo. Já Rosenthal passaria, sem sucesso, pelo Borussia Mönchengladbach, que poderia ter sido o destino de Spiegler.

“Quase assinei um contrato. Com Allan Simonsen, Henning Jensen e meu compatriota Shmuel Rosenthal, o Gladbach já tinha três estrangeiros no elenco — mais não eram permitidos na época — acabei me mudando para Paris”, recordaria ao site oficial da Federação Alemã de Futebol.

A participação no Mundial de 1970 não acarretaria nada de positivo para a seleção. Israel não voltaria aos grandes palcos. Deixaria a filiação à Confederação Asiática, passaria pela da Oceania e, nos anos 1990, chegaria à UEFA. Se diplomaticamente a solução foi boa, não se pode dizer o mesmo pelo panorama esportivo. Bons jogadores até surgiriam, como Ronny Rosenthal, Yossi Benayoun e Eran Zahavi. Ainda insuficientes. A viagem ao México segue sendo o grande feito, e inspiração, do futebol israelense.

Comentários

  1. Talvez com os habilidosíssimos Oscar Gloukh e Manor Solomon, Israel volte aos grandes palcos num futuro próximo.

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  2. O nível atual é bem baixo, pois mesmo com uma euro apinhada de times pra fase final, Israel nem sequer chegou perto de uma vaga lá...adoro seu conteúdo amigo, grande abraço!

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  3. Excelente ler isso, muito obrigado, Adriano!

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