Hans Krankl fez o que sabia, mas teve vida curta no Barcelona

Na mais inóspita das casas, o estádio Santiago Bernabéu, Johan Cruyff levantou sua última taça pelo Barcelona. O holandês não marcou gols, que couberam a Carles Rexach e Juan Manuel Asensi. Era 1977-78 e sua despedida viria ao final da temporada. Um homem insubstituível. Jogador, mas acima de tudo ideia. Cientes, os catalães buscaram um sucessor de feitos concretos. Hans Krankl não era um homem de sutilezas, mas cumpria sua missão como poucos. Não tremia à frente dos goleiros rivais.

Hans Krankl Barcelona
Foto: FC Barcelona/Arte: O Futebólogo


Um expert em marcar gols


“Marcar gols não é uma coisa que se possa prever. Depende de muitos fatores [...] Na temporada anterior, sem ir longe, consegui 41 tentos em 36 encontros. É mais de um por jogo. Se mantiver esse ritmo no Barcelona e na liga espanhola…”. Com estas palavras ao Mundo Deportivo (MD), Krankl deixou a capital da Catalunha para desfrutar de férias. Ele participara da Copa do Mundo, na Argentina, marcando quatro gols. O descanso era o prelúdio para um ano atribulado.

A fama de artilheiro precedia o austríaco de 25 anos. O Rapid não fora campeão nacional no último ano, mas Krankl colaborara com 57% dos gols alviverdes. E não era a primeira vez que o bomber alcançava semelhante forma. Em 1973-74, fora às redes 36 vezes, em 32 jogos. Podia não ser um artista da bola, ou um intelectual de chuteiras, mas o Barcelona vivia à margem dos feitos do Real Madrid e vencer era necessário e só se vence com gols. Por isso, os catalães vergaram o braço do Valencia, que aparecia em vantagem na busca pela contratação do centroavante. Acompanharia Johan Neeskens como estrangeiro do clube.

Dia 03 de setembro de 1978: Krankl estreava com a camisa blaugrana. O MD dava o tom da expectativa. “Sua torcida espera que o austríaco honre sua fama de goleador irresistível”. Contra o Racing Santander, o gol não veio. A vitória, sim: 1 a 0. Na semana seguinte, faria a primeira vítima: o Valencia, com derrota.

Krankl Estrena Racing Santander Barcelona Mundo Deportivo
Acervo: Mundo Deportivo

10 dias depois, daria o ar da graça continentalmente. Começava a disputa da Recopa Europeia. Contra o Shakhtar Donetsk, abriu e fechou a contagem de uma vitória tranquila, 3 a 0. O austríaco prometia e cumpria. Mas o ano barcelonense seria agridoce.

Nos números frios, ninguém podia apontar o dedo para Krankl. Os gols estavam saindo em profusão. Só não vinham consistentemente. Ele podia passar rodadas sem marcar e, adiante, fazer um doblete ou um triplete. Hércules e Rayo Vallecano sentiram isso na pele. Considerando turno e returno, os primeiros sofreram cinco tentos do austríaco. Destino parecido atingiu o Rayo, mas o quadro de Vallecas concedeu a manita num mesmo jogo — um superlativo 9 a 0.

Hans participou de 30 jogos, de 34. Deixou sua marca na metade deles. Foram 29 bolas nas redes rivais, que lhe renderam o prêmio Pichichi. Detalhe: no final de 1978, Krankl ficara com o segundo lugar no Ballon d’Or, oferecido pelos franceses do L'Equipe.

No primeiro ano no estrangeiro, quase alcançou a marca de um gol por jogo. Seus tentos corresponderam a 42% do total registrado pelo Barça na liga. O homem era ou não era um sucesso? Só que os catalães terminariam La Liga numa insossa quinta colocação.

Hans Krankl Johan Neeskens Barcelona
Foto:  imago sportfotodienst/Arte: O Futebólogo

Outro fracasso aconteceria na Copa do Rei. O clube era o campeão vigente e caiu já na primeira fase que disputou. O algoz foi, mais uma vez, o Valencia. O mau agouro ia além do coletivo azulgrana. Gols não eram suficientes para Krankl convencer. No Mestalla, o austríaco anotou um dos quatro tentos catalães (terminou 5 a 4). 

Só que a nota dois, concedida pelo MD, evidenciava desconfiança com o aríete. A crônica do jogo era literal: “Carrasco e Krankl estiveram muito apagados”. O gol teria sido “a única intervenção inspirada” do goleador. Não era mesmo fácil substituir Johan Cruyff.

Superação na Recopa Europeia


A luz no fim do túnel eram as performances europeias. Ainda que com mais emoções do que o desejado. Depois de passar pelos soviéticos do Shakhtar, o adversário foi o Anderlecht, último vencedor. Apostando em talentos como os de Ludo Coeck, Frank Vercauteren e Rob Rensenbrink, os belgas impuseram um 3 a 0 na ida. Na volta, Krankl ajudou na remontada, com um tento. Foram necessárias penalidades para assegurar o avanço catalão.

Contra Ipswich Town e Beveren os placares voltaram a ser magros. Os ingleses caíram com a aplicação da regra do gol marcado fora de casa; os belgas com derrotas marginais, ambas 1 a 0. O austríaco passou em branco em três dos quatro jogos das eliminatórias. Por fim, o Fortuna Dusseldorf aguardava os blaugranas na decisão. O quadro liderado pelos gols de Klaus Allofs era perigoso e evidenciou isso ao obrigar o Barcelona a jogar mais 30 minutos, após o apito final.

Krankl decidiu. Rexach já havia adiantado os catalães no marcador, 3 a 2, quando o vienense fez o quarto. O tento seria determinante, já que Wolfgang Seel diminuiria para os germânicos. Mais do que pelo título, Hans se reconectava com o torcedor pelo contexto. Ele quase não atuou na finalíssima da Basiléia e, se tivesse se ausentado, ninguém poderia lhe apontar um dedo sequer.


“Assinalemos, por fim, a colaboração de um voluntarioso, ainda que um tanto apagado Krankl. Evidentemente, não terá superado o trauma do recente acidente de que foi vítima sua esposa, mas, ao obter o quarto e decisivo gol, o que deu o título ao Barcelona, creio, recebeu o melhor remédio que podia esperar”, narrou o MD.

A partida aconteceu no dia 16 de maio. Na noite do dia 5 anterior, um sábado, os Krankl sofreram um acidente entre as ruas Diagonal e Numancia, após o clássico entre Barcelona e Espanyol. Dois dias depois, o El País sinalizava que, com uma lesão hepática, a esposa corria risco de morte. A família inteira estava no carro, mas Inge, submetida a uma cirúrgia de mais de cinco horas, era a única vítima. “Em vinte e cinco anos operando, só encontrei um outro caso tão difícil quanto este. Há poucas esperanças”, disse o doutor Sueiras.

Finalmente, no dia 12, o peso deixou o coração da família Krankl. Inge estava fora de perigo. “A juventude da esposa de Krankl e a disposição de sangue fresco para efetuar uma transfusão de sete litros foram as chaves para um resultado satisfatório após a operação cirúrgica”, assinalou também o El País. Faltou apenas dizer que uma multidão de torcedores do Barcelona se alinhou nos postos de doação de sangue naqueles dias. Krankl foi do inferno ao céu em menos de um mês.

Tragedia Krankl Mundo Deportivo
Acervo: Mundo Deportivo


A carreira de Krankl no Barça foi dimamitada


A nota final da temporada 1978-79 foi positiva para o Barcelona e para Krankl, apesar das desilusões nacionais. O que não evitou a efemeridade da paz. A eliminação precoce na Copa do Rei custara o emprego do treinador francês Lucien Muller, substituído por Joaquim Rifé. Este não se deu bem com Hans. O ano subsequente começou mal para o austríaco, com seca de gols e sem a confiança do treinador, que chegou a deixá-lo fora da relação em alguns jogos. Krankl não atuou entre as rodadas cinco e oito de La Liga.

Os problemas eram tão graves que, noticiou-se, a direção catalã buscava soluções. A principal delas respondia por um algoz da temporada anterior, Allofs. Mas havia outras: “Keegan, Rummenigge, Rossi, Zico e até Maradona permanecem ainda na agenda de Núñez”, noticiou o El País. Krankl estava na berlinda, numa época em que as equipes só podiam ter dois forasteiros ainda.

Krankl Salida Barcelona
Acervo: Mundo Deportivo

No final do ano, o homem-gol chegou a negar que algo cheirasse mal no vestiário: “É tudo mentira. Não me vou do Barcelona”, afirmou ao MD. “Estou farto de tanta especulação e comentários. Ainda tenho dois anos de contrato e quero cumpri-los”. Rifé também apaziguou: “Simonsen e Krankl são os estrangeiros do Barcelona”.

De fato, a diretoria culé estava em ação. No dia 4 de janeiro de 1980, foi publicada a notícia que muitos esperavam. Os nomes anteriormente especulados ficaram de lado. Era Roberto Dinamite quem chegava ao Camp Nou. Enquanto Krankl garantia que ia embora para nunca mais voltar, o brasileiro chegava animado: “Vi Krankl com a Áustria na Copa do Mundo. Me pareceu bom jogador. Vou substituí-lo, é verdade, e tenho certeza de que logo farei com que o esqueçam”.

Não foi bem o que aconteceu. Roberto estreou com um doblete ante o Almería. Faria apenas mais um gol, na Supercopa da Uefa, contra o Nottingham Forest. Enquanto isso, Krankl terminou a temporada emprestado ao First Vienna. Somou 12 gols em 17 jogos.

Hans Krankl Roberto Dinamite Barcelona
Acervo: Mundo Deportivo

Se parecia que Rifé tinha ganhado a queda de braço, essa impressão logo passou. Em março, o treinador foi substituído brevemente por Helenio Herrera. No início da temporada 1980-81, já era Ladislao Kubala quem dava as ordens. Ele queria a volta de Krankl e não teve dificuldades para despachar Dinamite de volta para o Brasil.

O vienense retornou, mas ficou apenas mais seis meses na Catalunha. Kubala não durou nada, Herrera reassumiu o comando da equipe e, contando com os gols de Quini, decidiu que não precisava de um goleador estrangeiro. Além do dinamarquês Allan Simonsen, ele daria preferência ao meio-campista alemão Bernd Schuster.

Em 30 de outubro de 1980, o El País noticiou: “Barcelona registrou Schuster ontem e deu baixa a Krankl“. Fim da linha, depois de 59 jogos e 44 gols. No início de 1981, o artilheiro voltou definitivamente ao Rapid Viena. E, adivinhem: em 18 jogos, marcou 16 gols. O bomber ainda estava vivo.

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