A sinceridade levou o Dinamo Minsk ao título soviético de 1982

Em 54 anos de disputa do Campeonato Soviético, apenas quatro vezes o título escapou de mãos russas e ucranianas. Lideranças de Moscou e Kiev garantiam que assim fosse, o que ficava especialmente evidente nas convocações da seleção e nas escolhas de seus treinadores. Houve quem desafiasse tal hegemonia. Corria a metade da temporada 1978, quando um velho conhecido retornou ao Dinamo Minsk. Não mais como ponta, agora como treinador. Eduard Malofeev levou protagonismo ao clube na cena futebolística soviética e europeia.

Dinamo Minsk 1982
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo


O retorno de Eduard Malofeev


Vivia-se o ano de 1972 quando um dos maiores ídolos do Dinamo Minsk começou a cogitar pendurar as chuteiras. Com uma lesão na cartilagem do menisco de um de seus joelhos, não tinha as melhores condições de prosseguir. Sem o craque, que por um tempo insistiu, tentou seguir jogando, o clube acabou rebaixado em 1973. Foi a gota d’água.

Depois de fazer 278 jogos pela equipe, anotando 114 gols, e representando a seleção soviética em mais de 40 partidas, inclusive na Copa do Mundo de 1966, Malofeev parou de vez e começou a orientar as equipes de base do clube. Tinha 33 para 34 anos. Tinha também muitas ideias. “Não há ninguém em Belarus com sua energia e otimismo”, disse Gennadiy Abramovich, que atuou brevemente com Malofeev, ao jornalista Jonathan Wilson, em A Pirâmide Invertida.

A afirmação como treinador veio logo. Em 1975, fez uma viagem de cerca de 350 quilômetros até Brest, onde assumiu o Dinamo local. Nascia um jeito de jogar futebol que se contrapunha à abordagem tradicional dos russos. Avesso à ciência de gente como Valeriy Lobanovskyi, ídolo do Dynamo de Kiev, Malofeev propunha um futebol sincero.

Segundo Abramovich, tratava-se de um jogo “sem provocar lesões, sem choques, sem empurrões: só se chutava a bola. Sem dar dinheiro a árbitros. E futebol puro, de ataque. Futebol do coração, não da cabeça”. Enquanto Lobanovsikyi, e é inevitável contrapor um ao outro, buscava informações sobre seus jogadores em exames e relatórios, privilegiando o time em detrimento do atleta e honrando uma tradição que passou por nomes como Viktor Maslov e Boris Arkadiev, Malofeev explorava a psique de seus comandados.

Eduard Malofeev 1982
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Não é que Eduard ignorasse a importância do coletivo. Seu objetivo era, o mais das vezes, obter uma unidade, mas a partir da individualidade de atletas conscientes de suas obrigações e do potencial de seus pés. Como em uma dança, em que da bem-sucedida expressão individual dos bailantes resulta uma bela exibição universal. Era isso que diferenciava Malofeev de Lobanovskyi, para o qual o time era uma máquina e os jogadores engrenagens.

Quando o comandante voltou para casa, sua abordagem foi eficaz lidando com jovens, mas também com indivíduos que lutavam contra seus demônios. Enquanto garotos como Sergei Gotsmanov, Sergei Aleinikov e Andrei Zygmantovich, todos futuros internacionais soviéticos, ascendiam, veteranos da estirpe do goleiro Mikhail Vergeenko, do atacante Pyotr Vasilevsky e do craque Aleksandr Prokopenko, jogavam seus últimos anos de carreira. A influência sob este último seria das mais significativas. Alcoólatra, não conseguia ter sequência, o que o impedia, inclusive, de receber chances com a URSS.

“O que aconteceu como o Dinamo Minsk em 1982 se deveu à harmonia entre juventude e experiência. Todos, independentemente de ser veteranos ou novatos, jogaram cada partida como se fosse a última de suas carreiras. Mas o mais importante foi que Malofeev era o cabeça do time, um cabeça singular. A vitória foi dele, um triunfo dos seus princípios e da sua compreensão do futebol”, contou Vergeenko a Wilson.

O que aconteceu em 1982 foi o resultado de um processo.

Alegria do povo


Em 1978, ano de sucesso de outro Dinamo, o de Tbilisi, o time de Minsk vagava pela segunda divisão soviética. Desde a aposentadoria de Malofeev como atleta, aquele foi o escalão que o clube mais frequentou, exceto por um acesso em 1975 que não resultou em outra coisa senão em outro descenso imediato. Os belarussos competiam, aproximavam-se do acesso, mas ele se recusava a acontecer. A situação mudou imediatamente após o retorno de Eduard. O time pegou o elevador e subiu.

Na volta à elite, o Dinamo Minsk começou a mostrar o potencial de um time destinado a ter sua história escrita em livros. O sexto lugar no Campeonato Soviético de 1979, a uma posição da classificação para a Copa da Uefa e com um ataque capaz de marcar 48 vezes, em 34 encontros, deixou escrita uma carta de intenções — assim como os 14 gols de Prokopenko, cuja carreira dava uma guinada.

Aleksandr Prokopenko Dinamo Minsk 1982
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O clube não repetiu a campanha nas duas temporadas seguintes. Não apenas os jovens mostravam a oscilação natural de quem ainda está em desenvolvimento; mais criticamente era Prokopenko um caso de solução-problema. Depois de ser convocado para os Jogos Olímpicos de 1980, convenceu os líderes do selecionado soviético que não valia a pena seguir chamando-o. Era como se apenas Malofeev estivesse disposto a abraçá-lo. E o treinador seguia no clube, apostando que se os jogadores fossem eles mesmos, os torcedores seguiriam apoiando-os e os resultados viriam.

“O futebol era uma distração para as pessoas, algumas das quais não viviam vidas felizes", disse Zygmantovich à revista britânica When Saturday Comes. “Você não conseguia ingressos para o estádio naquela época. Foi um momento incrível”.

Dinamo Minsk 1982
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A tabela de classificação do Campeonato Soviético de 1981 mostrou um problema crônico do time: ele empatava demais. Em 34 jogos, 13 vezes o Dinamo não evitou a igualdade. Naquela época, havia um limite no regulamento, que visava evitar a manipulação de resultados. Eram permitidos apenas 10 empates. Superada a marca, para cada um que excedesse, um ponto era tomado da equipe. Por outro lado, apenas os cinco primeiros colocados perderam menos vezes do que o quadro belarusso. Os motivos para um torcedor acostumado com a segunda divisão sorrir ainda eram muitos.

Porém, boas histórias não costumam contar a trajetória de times limitados a vagar pela metade da tabela de seus campeonatos. Em 1982, o Minsk empatou menos, perdeu menos e venceu bem mais. O cartão de visitas foi apresentado logo na primeira rodada, quando recebeu o Dinamo Moscou. Ele estava de volta: Prokopenko ainda tinha futebol e marcou o solitário gol da partida. Na sequência, a vítima foi o Spartak, também derrotado por 1 a 0.

“Mesmo antes do início, em março de 1982, nossos treinadores garantiram que lutaríamos pelo título. Sim, lá atrás ainda éramos azarões, mas muito preparados para executar nossas funções, técnica e taticamente. O partido também não nos pressionou, exigindo grandes vitórias, o que foi importante para nosso estado emocional”, lembrou o zagueiro Sergei Borovsky, em entrevista ao portal Minsk News.

Apesar disso, o Campeonato Soviético era duríssimo, recheado de times fortes e com tradição O Dinamo Tbilisi, lembrado sempre pela qualidade de jogadores como Chivadze, Shengelia, Daraselia e Kipiani, logo obrigou Malofeev a permanecer com os pés no chão, goleando o Minsk, 4 a 1.

Macacos contra leões


Quaisquer planos do Dinamo Minsk passariam por frear as investidas do Dynamo de Kiev. O time de Lobanovskiy era o bicampeão vigente e tinha um elenco estrelado. Oito jogadores kievanos representaram a União Soviética no Mundial de 1982, entre os quais Oleg Blokhin. Era suposto que os times se encontrassem pela primeira vez na quinta rodada, em abril de 1982. Contudo, o confronto só aconteceu no final do ano, faltando quatro rodadas para o término do certame. Naquela ocasião, o time de Malofeev já se posicionava como candidato ao título.

O ano de Copa do Mundo pode ter favorecido os belarussos, que cederam apenas o defensor Borovsky à URSS, mas seria uma simplificação afirmar que esse foi um fator determinante para o que se seguiu.

Quando por fim recebeu o Dynamo de Kiev, o Minsk já havia perdido todas as partidas que perderia. À derrota para o Tbilisi, somariam-se infortúnios contra Metalist (2 a 1), Chernomorets (1 a 0), Shakhtar (2 a 1), Neftchi (3 a 2) e Torpedo (1 a 0), a única em casa. Mais importante do que isso, em plena Kiev, com gols de Yuriy Kurnenin, Prokopenko e Kondratyev, o time vencera o Dynamo, no que era para ter sido um confronto de segundo turno, mas aconteceu primeiro.

Quando se reencontraram, em 27 de outubro, já se sabia que a corrida para o título se resumia aos dois. Ou ficaria na Ucrânia ou iria para Belarus — pela primeira vez. O empate por 1 a 1, novamente com Prokopenko indo às redes, num verdadeiro golaço de calcanhar, deixou as coisas em aberto.


“Nós tínhamos uma conversa em grupo três horas antes de cada jogo. Ele [Malofeev] reunia o time e tentava ‘ler’ os jogadores. Olhava nos olhos de cada um, sempre tentando descobrir algo. Era como um médico. Analisava os jogadores e imediatamente reconhecia seus pontos fortes e fracos. Era uma pessoa que conseguia tocar seu coração, a sua alma. Ele sabia como falar com as pessoas”, recordou Vergeenko.

Era a hora de uma vingança abrir caminhos para o Dinamo Minsk.

Na última rodada do Campeonato Soviético de 1976, o Dynamo de Kiev já não alcançaria o Torpedo Moscou, na luta pelo título, enquanto um de seus rivais e adversário da ocasião, o Spartak, se salvaria do descenso com um triunfo. Na Tragédia de Kiev, como o confronto ficou conhecido, os donos da casa venceram por 3 a 1. O empate teria sido suficiente para a permanência dos moscovitas. Não aconteceu e o Spartak ficou com aquilo entalado.

Voltando a 1982, depois de massacrar o Dinamo de Moscou na penúltima rodada, 7 a 0, o Minsk enfrentaria o Spartak e, vencendo, seria o campeão. “Imaginem: há uma tropa de macacos atravessando um campo. Do outro lado está um grupo de leões. Muitas coisas diferentes podem acontecer. Talvez os leões despedacem os macacos. Ou talvez um dos macacos vá primeiro, distraia os leões e se sacrifique para que os outros macacos vivam. Hoje, como macacos, devemos nos sacrificar pela vitória”, teria afirmado Malofeev.

Há quem diga que o Spartak estava disposto a entregar, mas não de forma evidente. Não parecia o caso, no entanto. O time da capital até saiu na frente, mas Igor Gurinovich foi ao resgaste dos belarussos e virou a partida. Vasilevsky e Aleinikov aumentaram o marcador. Porém, o rival foi à luta e marcou mais duas vezes, com Sergei Shavlo. Foi isso: 4 a 3 e a confirmação do inédito título do Dinamo Minsk.


“Quando voltamos de Moscou para Minsk, foi incrível”, prosseguiu Vergeenko. “Havia pessoas com flores, beijos e amor: nada organizado, apenas amor”. A memória é dividida com Borovsky: “Houve uma reunião nacional na estação de Minsk. Quase metade da cidade nos cumprimentou na Praça da Estação. Isso não se esquece”.

Tentando a sorte no continente


“Não vou citar nomes, mas havia cinco ou seis jogadores capazes de jogar nos principais clubes do mundo. O único problema era que no leste estávamos acostumados a um jogo mais coletivo, enquanto no ocidente valorizavam mais as qualidades individuais”, contou Aleinikov ao portal Footballski.

Com o título nacional, o Dinamo Minsk se classificou para a Copa dos Campeões de 1983-84, dada a divergência de calendário entre a URSS e a maior parte dos campeonatos nacionais do restante da Europa. Os belarussos não conseguiram renovar a conquista soviética em 1983, ficando na terceira posição, seis pontos atrás do campeão Dnipro, mas fizeram bom papel na competição continental, apesar de lidar com a recaída e decadência de Prokopenko, que deixara o clube e faleceria em 1989, aos 35 anos.

Na primeira fase, o Dinamo enfrentou os suíços dos Grasshoppers. Vencer em casa foi fundamental para o avanço, com um placar agregado apertado, 3 a 2. Adiante estavam os magiares do Györ, do atacante Lázár Szentes, lembrado por marcar um dos gols da Hungria na histórica goleada diante de El Salvador, no Mundial de 1982 (10 a 1).

Na viagem do Minsk, a Europa teve um vislumbre do que a sinceridade de Malofeev era capaz de produzir: seis gols. Em um jogo apoteótico, Viktor Sokol marcou um hat-trick. O jogo acabou 6 a 3 para os soviético e o artilheiro da partida marcaria mais dois na volta, vencida por 3 a 1. Sokol seria o artilheiro da competição, com meia dúzia de gols.


O fim da linha aconteceu nas quartas, contra um time que era casca duríssima, o Dinamo Bucareste. Depois de empatar em casa, o Minsk cedeu um mísero e fatal tento aos romenos e foi eliminado. A prova de que os belarussos não perderam para qualquer equipe veio nas semifinais. Os homens da capital romena fizeram uma eliminatória equilibrada contra o futuro campeão Liverpool. Na Inglaterra, sustentaram um empate até os cinco minutos fatais.

Pouco depois, a história de sucesso do Dinamo Minsk chegou ao fim, embora o time seguisse entre os melhores do país, conservando sua base de jogadores. Honrado por seus feitos, Malofeev assumiu a seleção soviética ainda em 1983. Voltou em 1988, quando o declínio do time já era evidente. Alguns jogadores ganhariam o mundo. Aleinikov, por exemplo, defenderia as cores da Juventus, enquanto Gotsmanov acertaria com o Brighton, e Zygmantovich com o Groningen.

Com a ruína da URSS, veio a do próprio clube, limitado a sucessos esporádicos no fraco cenário futebolístico de Belarus e vivendo à sombra do que foi. Parece não haver esforços suficientemente sinceros para mudar essa realidade.

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