Quando Menotti levou o Huracán ao título argentino em 1973

É comum ouvir falar que, na Argentina, há cinco clubes gigantes. Neste cenário, duas rivalidades se destacam: Boca Juniors e River Plate; Independiente e Racing Club. O San Lorenzo sobraria, não fosse a existência do Huracán, não raras vezes recordado como “o sexto grande”. Uma das mais belas passagens de sua rica história foi vivida em 1973, a partir das ideias da mente de um homem que se tornou referência: César Luis Menotti. 


Huracan 1973
Foto: Huracán Retro/Arte: O Futebólogo

1971: Ressurge um paradigma argentino

Nos anos 1960, o Rosario Central revelou um atacante de inquestionada eficiência, chama-se César Luis Menotti, mas talvez respondesse mais rapidamente se chamado por seu apelido, El Flaco. Com mais de 1,93m e uma magreza surpreendentemente aparente, acumulou montes de gols em quatro anos. Passou por Racing e Boca; defendeu brevemente o Santos de Pelé e encerrou a carreira em São Paulo, mais especificamente na Mooca, defendendo o Juventus.

Menotti foi criado sob a influência do River Plate dos anos 1940, mas atuou na década em que o futebol argentino passou por intensa transformação; jogar bonito deixava de ser um dos objetivos do esporte, agora mais pautado na necessidade visceral da vitória.

Corria o ano de 1970, quando Menotti se tornou auxiliar técnico de seu amigo Miguel Gitano Juárez, no Newells Old Boys. A dupla se sentia capaz de recuperar a herança de la nuestra, o futebol argentino com nota artística, e voltou inspirada do México, onde acompanhou in loco o terceiro Mundial vencido pelo Brasil. 

Cesar Luis Menotti Huracán
Foto: El Gráfico/Arte: O Futebólogo

Menotti, então com 32 anos, chegou a comandar o rubro-negro rosarino em algumas oportunidades, momentos em que Juárez esteve doente, mas em em 2 de maio de 1971 — de acordo com a tradicional revista El Gráfico — decidiu que caminharia por conta própria e iniciou uma nova história com o Huracán. O time tinha títulos nacionais nos tempos antigos, na década de 1920, mas nenhum troféu da era profissional. O técnico foi convencido pelo presidente Luis Seijo, que viajou 300 km até Rosário para buscar seu comandante.

“O que devo fazer é levantar o moral do plantel, que parece bastante caído, mas no Huracán há jogadores para fazer uma boa campanha“, afirmou o treinador na sua chegada.

O mandatário parecia saber que seus últimos contratados, juntamente com a fornada de talentos que surgiam nas categorias de base do Globo, se encaixavam aos modos de Menotti, que tinha ideias muito bem identificadas do que era futebol. 

“Para os que acreditam que tudo o que importa é a vitória, deixo o aviso de que alguém sempre vence. Em um campeonato de 30 times, 29 precisam se perguntar: ‘o que deixei neste clube, o que levei aos meus jogadores, qual possibilidade de crescimento dei a eles’”, afirmou César, como reproduzido no livro Angels With Dirty Faces, de Jonathan Wilson. “Não vejo nas táticas a única forma de vencer; ao invés disso, acredito que a eficiência não está divorciada da beleza“.

Em tempo, tal ideário seria vorazmente contraposto àquele propagado por Carlos Bilardo, herdeiro de Osvaldo Zubeldía, seu mestre no Estudiantes da metade final dos anos 1960 e, curiosamente, o antecessor de Menotti no Huracán. Essa hora ainda demoraria a chegar. A proposta do novo comandante ainda não era percebida como algo cristalino, precisava se ver materializada dentro das quatro linhas.

1972: o Huracán incomoda

O futebol admite sucessos surgidos do acaso, mas, embora o inesperado tenha seu charme, são os triunfos construídos com a atenção aos detalhes que se tornam objeto de estudo. 

Menotti encontrou no Huracán a melhor expressão do que enxergava para o futebol argentino. Jogadores com algum lastro, como Alfio Basile, Nelson Chabay, Roque Avallay (todos campeões da Libertadores) e Omar Larrosa, que quase fechou com o Gimnasia, encontraram-se com jovens, alguns revelados pelo próprio Globo, casos dos meio-campistas Miguel Ángel Brindisi e Carlos Babington. Tais nomes se adequavam ao que o treinador imaginava, algo como um 4-3-3, que, muitas vezes, pareceu um 4-1-5.

No Campeonato Metropolitano de 1972, os primeiros frutos desse trabalho ficaram devidamente evidentes. O Huracán fechou o certame com a terceira colocação — nove pontos atrás do campeão, San Lorenzo, e a três do Racing. O dado mais importante, contudo, foi o número de gols marcados: 66, em 34 jogos. Ninguém marcou tantos. Brindisi ter sido o artilheiro, com 21 tentos, e Avallay o vice, com 16, não tem nada de acaso.

“Fizemos uma grande campanha e tomamos o terceiro lugar do River, em um jogo memorável que vencemos por 2 a 1, no Monumental de Nuñez, na última rodada“, recordou Brindisi, ao infobae.

Brindisi Babington Huracán
Foto: El Gráfico/Arte: O Futebólogo

Ainda naquele ano, foi disputado o Campeonato Nacional. Lotado na Zona B, o Huracán ficou em 4º lugar. Os Quemeros faziam uma ótima campanha, mas derreteram no final do ano, perdendo as últimas partidas, diante do rival San Lorenzo e do Boca Juniors. Ainda assim, tiveram o segundo melhor ataque dali, somando dois gols por partida.

Vale dizer que a história de que o Huracán seria o “sexto grande” da Argentina, vinha sofrendo justos ataques, desde a década anterior. Isso porque, enquanto o time de Parque Patricios não conquistava o Campeonato Argentino, outras equipes, casos de Estudiantes, Vélez Sarsfield, Chacaritas Juniors e Rosario Central, passaram na sua frente e levantaram o caneco, reivindicando seu lugar entre os maiores.

O clube estava chegando perto, mas sem título aquele time teria sido, provavelmente, esquecido.

1973: Chega de esperar

Para a disputa do Metropolitano de 1973, Menotti recebeu um reforço importante e que viria a ser seu capitão. O lateral Jorge El Lobo Carrascosa, com passagem pela seleção argentina e que fora campeão pelo Rosario Central, completava um time que, em sua maioria, já trabalhava junto há um certo tempo. A grande adição, contudo, foi a chegada do ponta endiabrado, velocíssimo e boêmio René El Loco Houseman, ex-Defensores de Belgrano, que tinha apenas 20 anos.

A saga do Huracán começou em 4 de março, da melhor forma possível. O Argentinos Juniors foi de La Paternal até Parque Patricios apenas para ser massacrado. O Globo foi impiedoso; consumou um 6 a 1. Como recuperado pelo portal Futebol Portenho, a revista El Gráfico exaltou o feito alcançado pelo time de Menotti: “Este Huracán demonstrou que quando a bola está no poder de seus atacantes, cada avanço traz metido o sabor do gol”.

Avellay Babington Brindisi Houseman Larrosa Huracán
Foto: Huracán Retro/Arte: O Futebólogo

Logo no início, ficou evidente o que Larrosa contou a Wilson, no referido Angels With Dirty Faces: “Menotti sempre insistia em fazer pequenas coalizões: Babington e eu, Russo e Babington, Carrascosa e Russo”. Babington acrescentou: “O time estava em sintonia com o gosto dos argentinos. Havia gambetas, movimentos com um toque, canetas, chapéus, um-dois, ultrapassagens”.

Enquanto isso, lá atrás, Basile liderava uma defesa que, ao final do campeonato, seria a menos vazada da competição, com menos de um tento concedido por partida. Parte disso também passava pela eficiência do volante Francisco Fatiga Russo. Menotti era visto como um romântico, mas não vivia seu ideal por si mesmo.

O time embalou uma sequência grande de vitórias. Ao Argentinos Juniors, seguiram-se, como vítimas, Newells Old Boys, Atlanta  e Colón. O Racing foi outro massacrado, 5 a 0. “Todos os cinco gols saíram a partir dos 20 do segundo tempo… em outra nota, se destaca que o Huracán nunca havia ganhado mais de cinco jogos seguidos ao começar um campeonato”, relatou El Gráfico.

Não parou ali. O Vélez Sarsfield também seria superado, antes de o Globo empatar com o Estudiantes, na sétima rodada. 

“Depois desse início, especialmente com as vitórias fora de casa, entendemos que éramos capazes de lutar pelo título”, afirmou Larrosa, o principal artilheiro do time na campanha, com 15 tentos. “Mas Menotti sempre nos disse para pensar no próximo jogo, não no campeonato, ajustando detalhes para jogarmos melhor. Esse era seu objetivo mais importante, seguir jogando bem”. 

A seguir, aconteceria a primeira derrota do time, em visita ao River Plate. 

Campeão com a língua e fora

O Huracán sofreria apenas mais quatro reveses, sendo o diante do Boca Juniors, num 4 a 1, o pior. Alcançar 19 vitórias em 32 jogos, em um campeonato recheado de equipes tradicionais e fortes foi um feito de dimensões impressionantes. Mas não foi tão fácil quanto se poderia pensar. No segundo turno, o ataque (que seria o segundo melhor da disputa, com 62 tentos) perdeu força, e a força da defesa se impôs. O time ficou cinco jogos sem sofrer gols, entre as rodadas 21 e 25.

O saldo construído até ali era grande demais para seus esforços serem freados no final. O título foi confirmado na 32ª rodada, a duas do fim do torneio (num torneio com 17 equipes, cada uma folgava em uma rodada por turno). Foi na derrota para o Gimnasia. A questão é que o Boca perdeu para o Vélez e já não podia alcançar o novo campeão, nem impedir a inevitável invasão de campo.

1973 Huracán
Foto: infobae/ Arte: O Futebólogo

“Eles encheram os campos argentinos de futebol e, depois de 45 anos, devolveram o sorriso a um bairro com a cadência do tango”, publicou o Clarín.

O Huracán perdeu na sequência para o San Lorenzo (que carimbou a faixa do rival) e empatou com o Boca. É improvável que alguém tenha, verdadeiramente, se incomodado com aquilo em Parque Patricios.

“Esse título foi o cumprimento de um sonho. Pelo modo como se formou o time, por como jogava, por tudo o que gerou, por ter se dado em um clube impulsionado por tanta gente de bairro. O Huracán de 1973 foi um pedaço de história do futebol argentino, uma bandeira ideológica para muitos”, falou Menotti, à El Gráfico.

A herança de la nuestra, a memória do River Plate dos anos 1940, estava preservada. Menotti e o Huracán garantiram que assim fosse, mostrando ao país que era possível vencer de uma maneira diferente daquela que, por exemplo, levou o Estudiantes a um tricampeonato continental. No futebol, se vence de diversas formas, mas não é qualquer vitória que influencia o pensamento de seu tempo.

O Huracán fez boas campanhas no Nacional de 1973 e no Metropolitano de 1974, mas não renovou seu título. Foi às semifinais da Libertadores e viu Babington, Brindisi, Carrascosa e Houseman disputarem o Mundial da Alemanha, mas, em outubro daquele ano, perdeu Menotti para a seleção argentina. Era a hora de uma nova história ser escrita; chegava o momento de o planeta inteiro conhecer o método que devolveu leveza às canchas portenhas. Ele ganhava nome: Menottismo.

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