Karl Rappan e a origem do ferrolho suíço no final dos anos 1930

A Suíça é um país peculiar. Politicamente neutro, economicamente descomplicado, lembrado por seus relógios, canivetes, chocolates e, é claro, pelos Alpes, desenvolveu aura própria. No campo dos esportes, entretanto, o mais famoso deles nem sempre foi suficientemente popular em solo helvético. Ao perceber certa inaptidão dos nacionais suíços para a prática do futebol, o austríaco Karl Rappan tomou uma decisão que mudaria os rumos da prática, tanto para o país quanto para o resto do planeta. Aqueles eram os anos 1930.

Karl Rappan Switzerland
Foto: Toby Cudworth/Arte: O Futebólogo


Uma mente brilhante


Karl Rappan, a mente por trás dessa revolução, foi jogador de futebol e terminou sua trajetória dentro das quatro linhas representando as cores do Servette, em Genebra. Seu último porto enquanto futebolista determinou os caminhos de sua carreira como treinador. Depois de servir como jogador-treinador no próprio Servette, passou pelo Grasshoppers e, concomitantemente, assumiu o comando da seleção suíça, a partir de 1937.

No currículo de jogador, o vienense Rappan levava títulos nacionais tanto em seu país quanto na própria Suíça; conhecia os caminhos da vitória, também por ter representado sua seleção.

Diferentemente de sua Áustria, que vivera a dor e a delícia com seu Wunderteam — contando como uma estrela como a do Homem de Papel, Matthias Sindelar —, na Suíça não se encontrava gente de refino técnico, além de não haver jogadores profissionais. Os atletas assim se distinguiam apenas em parte do tempo, dedicando o restante do dia às profissões convencionais.

Karl Rappan
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Com esse quadro desenhado, Rappan só tinha uma certeza: antes de mais nada, precisaria pensar suas equipes de forma que elas não se assemelhassem a outra das marcas suíças, o esburacado queijo. Em tempos românticos, lembrados pela genialidade de gente como o bicampeão mundial Giuseppe Meazza, trabalhar a negação de espaços e a marcação, como princípio, era uma novidade inóspita. Talvez até mesmo insensata, sob acusações de que feriria o espírito do jogo ou seria a tática dos maus praticantes. Porém, era necessário garantir que o time suíço fosse competitivo.

À revista World Soccer, em trecho reproduzido por Jonathan Wilson no livro A Pirâmide Invertida, Rappan afirmou que “o Suíço não é um futebolista natural, mas é sério a fazer as coisas”. Onde não havia talento, criatividade e aptidão pura e simples para o jogo, existia dedicação e disciplina.

Surge o ferrolho


A criação de Rappan ficou conhecida como verrou (do francês “trancar”), nome atribuído por um jornalista suíço. Por obra da mente do austríaco, nasceu a primeira versão de uma defesa composta por quatro jogadores, algo impensável em tempos de supremacia do esquema tático 2–3–5, ou do famigerado WM, proposto por Herbert Chapman no Arsenal. Se não podia competir na técnica, a Suíça o faria gerando superioridade numérica na defesa e barrando a iniciativa de seus adversários. Cada um usa as armas que tem.

Outra dificuldade inegável com que o austríaco tinha de lidar era o déficit físico existente entre seus atletas, trabalhadores comuns na maior parte do tempo, e jogadores que se dedicavam integralmente ao futebol — ou que ao menos não tinham outra ocupação profissional.

Karl também reconheceria sua ideia no inglês bolt. Todavia, má tradução poderia causar confusão aqui. Não se tratava de um raio, mas de um ferrolho. Mais tarde, sua evolução apresentaria uma configuração com dois laterais, um defensor perseguidor e um na sobra, o líbero; algo que seria fácil e sofisticadamente identificado no trabalho de Helenio Herrera à frente da Internazionale, ou no de Nereo Rocco pelo Milan, e ganharia um nome eterno: catenaccio.

Switzerland Germany 1938
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A ideia por trás daquela disposição tática era clara e buscava, tão somente, minorar os defeitos decorrentes das flagrantes deficiências dos jogadores suíços.

“Pode-se escolher um time de acordo com dois pontos de vista. Ou você tem onze indivíduos que, com classe e habilidade natural são capazes de vencer seus oponentes — o Brasil seria um exemplo — ou você tem onze jogadores medianos, que precisam estar integrados numa concepção particular, um plano de jogo”, prosseguiu o comandante.

Na prática, o trabalho de Rappan decorreu do 2-3-5. Diferentemente da escolha de Chapman, que recuou seu center-half e abriu os dois zagueiros, compondo um 3-2-2-3, Rappan manteve seu médio onde estava. No entanto, recuou seus pontas-médios, dando-lhes atribuições similares às dos laterais modernos e mudando o posicionamento dos zagueiros, dando a um funções de combate e ao outro, de cobertura. Este ficou conhecido como verrouller, para muitos a versão incipiente do líbero. A força do meio-campo era preservada e a defesa ficava mais forte.

Para evitar o problema típico das equipes que optam por ter um jogador na sobra defensiva — deixar um atleta rival mais livre, uma questão meramente aritmética — Rappan também exigia que seus atletas se posicionassem muito recuados, com linhas próximas. Assim era difícil criar chances, mas o adversário também não oferecia tanto perigo. Era preciso, contudo, testar a nova fórmula.

Preparativos para Copa do Mundo de 1938


Era consensual o entendimento de que a Suíça era uma equipe fraca. Na Copa do Mundo de 1934, sua primeira, eliminou a igualmente insuficiente Holanda (que só cresceria a partir do final dos anos 1950), antes de cair para a forte Tchecoslováquia, futura vice-campeã e que apostava muitas fichas em Oldřich Nejedlý, artilheiro da competição, com 5 gols. Em si, o resultado não dizia nada que já não fosse esperado.

Para o certame de 1938, a Suíça se classificou vencendo apenas uma partida, diante de Portugal. Era o primeiro feito significativo de Rappan no comando do selecionado helvético, isso porque o escrete lusitano era orientado pelo icônico Cândido de Oliveira e levava, no ataque, a estrela de Fernando Peyroteo, um dos maiores atletas portugueses de todos os tempos. No jogo sediado em Milão, os suíços resolveram tudo no primeiro tempo, com gols de Georges Aeby e Lauro Amadò. Peyroteo descontou.

Switzerland Portugal 1938
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

20 dias mais tarde, a situação começou a ficar mais interessante.

“A Inglaterra foi derrotada pela seleção semiprofissional da Suíça por dois gols a um aqui hoje. Não houve dúvidas sobre o mérito da vitória suíça; sua vitória foi bem merecida. A Inglaterra jogou mal, coletiva e individualmente, e não foi tão boa quanto contra a Alemanha. A Suíça, por outro lado, jogou bem em equipe e seus atacantes sempre incomodaram a defesa inglesa”, narrou o The Times do dia 23 de maio.

À época, a Inglaterra se auto intitulava país do futebol, negava-se a se filiar à FIFA e, portanto, não disputava os Mundiais. Por isso, sempre que os ingleses eram batidos, as pessoas paravam para prestar atenção. A partida de Zurique ficou eternizada como um dos grandes momentos da história da seleção suíça.

Faltavam duas semanas para o início da Copa do Mundo. Na partida de abertura, os helvéticos enfrentarim a Alemanha Nazista, que incorporara a Áustria. Até então, o triunfo germânico era dado como favas contadas.

A Suíça não é tão inofensiva assim


“Mesmo depois de duas prorrogações, a partida entre a Allemanha e a Suissa terminou empatada por 1 a 1”, anunciou a Folha da Manhã do dia 05 de junho de 1938. Mesmo com reforços tomados à força da Áustria, os atacantes Hans Pesser e Wilhelm Hahnemann, o defensor Willibald Schamus, o goleiro Rudolf Raftl e o capitão Hans Mock, alguns dos quais disputaram o Mundial de 1934 pelo Wunderteam, a Alemanha não foi páreo para a estratégia helvética, no Parc des Princes. Depois da prorrogação, foi necessário marcar um replay.

Folha da Manhã Alemanha Suíça 1938
Acervo: Folha

Quatro dias depois, outra vez na famosa casa parisiense, os países se reencontraram. “Depois de estar perdendo por dois a zero a Suissa derrota a Allemanha por quatro a dois”, voltou a anunciar a Folha da Manhã. No final do primeiro tempo, com a contagem de 2 a 1 favorecendo o quadro germânico, parecia o fim para os homens de Rappan, depois de Aeby se machucar em choque com um defensor rival e ser retirado de campo — ainda não eram permitidas alterações.

Na etapa final, sai o empate e Aeby volta ao campo, com dores mas disposto a ajudar seu país. É dele a assistência para o gol da virada helvética. O placar ainda seria ampliado, diante de 35 mil espectadores. “Depois do ‘match’ muitos technicos externaram a opinião de que a Suissa será capaz de desfazer as pretensões que a Hungria tem na Taça do Mundo”, completou a reportagem.


No dia 12, agora em Lille, Suíça e Hungria se enfrentaram. Os magiares chegavam dispostos a fazer barulho, depois de caírem nas quartas de finais quatro anos antes, diante do azar que foi enfrentar a Áustria. Ídolo do Ferencvaros e que mais tarde treinaria Juventus, Roma e Bologna, o capitão György Sárosi começou a acabar com o sonho suíço. No apagar das luzes, sairia o 2 a 0. Fim da linha. Outra vez, a Suíça era eliminada pela futura vice-campeã.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial tornou impossível precisar como aquela equipe Suíça teria se desenvolvido, mas um time que vence a Inglaterra e elimina a Alemanha já não podia ser ignorado. Rappan provara que um bom sistema podia superar a técnica e o talento.


Rappan influenciou gerações


Rappan voltaria ao comando da Suíça mais três vezes, entre 1942-49, 1953-54 e 1960-63. Nenhum outro país seria tão influenciado futebolisticamente por seu ideário quanto a Itália, começando por Giuseppe Viani, idealizador do Vianema. Porém, foram os helvéticos os mais beneficiados, não apenas dentro das quatro linhas. Karl lhes mostrou que podiam competir.

Além de canivetes, chocolates, queijos ou relógios, ou de suas peculiaridades geográfico-político-econômicas, a Suíça forjou uma escola de futebol, inspirada mas independente do verrou. Com modernizações e desenvolvimento, levou a resultados como a vitória marginal, 1 a 0, frente a futura campeã mundial Espanha, na Copa do Mundo de 2010, ou a eliminação, apenas na prorrogação, para a Argentina, nas oitavas de finais da edição de 2014 — outro 1 a 0.


Nos dois cenários, o comandante da Suíça era Ottmar Hitzfeld, como Rappan, um estrangeiro — mas alemão, ainda que nascido em região fronteiriça. As semelhanças não param aí. Hitzfeld também encerrou a carreira de atleta em solo helvético, começando a trajetória de treinador lá.

Seu maior êxito nos bancos acabaria sendo o título da Liga dos Campeões de 1996-97, no comando do Borussia Dortmund, ainda que tenha repetido o feito pelo Bayern. Na oportunidade, os aurinegros venceram uma equipe da Juventus recheada de estrelas, como Zinedine Zidane, Alessandro Del Piero e Christian Vieri. Depois de ser superado, seu contraparte, Marcello Lippi, o parabenizou pela “perfeita organização” de sua equipe. Soa familiar?

Ottmar Hitzfeld Switzerland
Foto: Sky Sports/Arte: O Futebólogo

Como relatado pelo Guardian, seria uma simplificação, até um erro, posicionar Hitzfeld como um discípulo do catenaccio, que bebeu da fonte de Rappan. Ainda assim, a publicação o descreve como “um pragmático, um treinador sem ideologias, que calcula as forças e fraquezas de seus jogadores e, então, apresenta a fórmula que melhor funciona”. Rappan criou mais do que um sistema de jogo, incutiu um jeito de pensar.

A diversidade étnica que passou a caracterizar a seleção suíça, sobretudo a partir dos anos 2000, diminuiu a necessidade de opção por táticas tão rígidas, mas não matou a essência do jogo tramado por Karl Rappan, oitenta anos atrás. O mestre da competitividade morreu em 1996, aos 90 anos, mas seus feitos reverberam. Seu ferrolho nasceu na década de 30 e, adaptações à parte, marcou indelevelmente a história do futebol.

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