Solidão sem pátria: Ardiles, Ricky Villa e a Guerra das Malvinas

A sorte de ser um filho bem quisto de uma nação e, ainda assim, ser adotado por outra, não é algo que se veja no dia a dia. Foi o que aconteceu quando Ricardo Villa e Osvaldo Ardiles, campeões mundiais de 1978 com a Seleção Argentina, foram vendidos ao Tottenham. Naquela altura, Ricky e Ossie eram ídolos nacionais e partiam para uma aventura rumo ao desconhecido, já que a presença de estrangeiros no futebol bretão era um fenômeno pouco verificado àquela época.

Ricky Villa Keith Burkinshaw Ossie Ardiles
Foto: PA/Arte: O Futebólogo


Em um contexto em que o jogo praticado na Inglaterra era mais direto — baseado em lançamentos longos e virtudes físicas — Ardiles e Villa, provenientes de Huracán e Racing, respectivamente, carregaram consigo diferenciais que logo apaixonaram o amante local do esporte. Apesar de terem passado por um período de adaptação, tanto à vida, à barreira idiomática, quanto ao futebol, os argentinos tiveram vida longa nos Spurs.

A presença de um na vida do outro ajudou muito. Embora nunca tivessem atuado juntos por clubes, em 78, os meio-campistas haviam sido companheiros de quarto durante a Copa do Mundo e se conheciam bem.

Ossie e Ricky levaram as principais virtudes do futebol argentino à Inglaterra. Ardiles representava a técnica sul-americana, a destreza para passar pelos adversários e a lucidez para passar a bola. Formara-se num time do Huracán que passara por revolução de estilo com César Luis Menotti. Villa, por sua vez, além de suas qualidades técnicas era todo coração, um verdadeiro leão. A dupla também deu sorte: encontrou no Tottenham um jogador perfeito para complementar seu jogo, o talentosíssimo Glenn Hoddle.

Ardiles Argentina 1978
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Construindo idolatria


Os hermanos tinham uma incumbência: devolver os Spurs às posições mais altas das competições disputadas. A contratação da dupla se deu em um momento de expectativas para o clube londrino, que acabara de retornar da segunda divisão e precisava se restabelecer na elite. Sob a liderança do treinador Keith Burkinshaw desde 1976, o estádio White Hart Lane vivia um ambiente de apreensão, mas o comandante estava certo de que o que vira no Mundial era exatamente o que a equipe precisava. E não se equivocou.

Após duas temporadas de reafirmação, terminando o Campeonato Inglês em 11º e 14º lugares, o time voltou a um pódio em 1981. Com protagonismo argentino.

O Tottenham alcançou as finais da FA Cup, depois de passar por Queens Park Rangers, Hull City, Coventry City, Exeter City e Wolverhampton. Contudo, quando chegou a hora de enfrentar o Manchester City, em Wembley, o time foi mal. Villa acabou substituído na metade da etapa final e apenas um gol contra, em lance fortuito (cobrança de falta de Hoddle que desviou em Tommy Hutchinson), garantiu que houvesse um segundo jogo.


As dificuldades, entretanto, extraíram o que havia de melhor no seio do plantel londrino. Em especial, mexeu com Ricky. No replay, Ardiles chutou, Steve Archibald desviou, o goleiro mancuniano deu rebote e Villa abriu o placar. O City chegou a virar, com tentos de Steve MacKenzie e Kevin Reeves.

Então, Ricky passou a bola a Hoddle que deu um balãozinho para Archibald, que estava na área. Apesar das dificuldades do escocês para matar a bola, seu companheiro de ataque, Garth Crooks, apareceu como um foguete, finalizou e empatou. Por fim, Villa recebeu bola de Tony Galvin e, agindo como um autêntico craque argentino, saiu driblando adversários até invadir a área rival e conferir números finais à partida: 3 a 2. Ossie, seu grande amigo, não tem dúvidas ao afirmar: aquela foi a grande noite de Villa.


Não obstante o poder de decisão de Ricky, quem mais brilhara até ali era mesmo Ossie, ao ponto de ter sido gravada uma música em sua homenagem, às vésperas da final. Ossie’s Dream evidenciava a carinhosa relação que havia se estabelecido entre os argentinos e a Inglaterra.


Pausa para o ódio total


O sucesso prosseguiu. Em 1982, os Spurs voltaram ao palco mais famoso da Inglaterra, para defender o título obtido no ano anterior. 

A despeito disso, foram obrigados a lidar com um problema que não só lhes dizia respeito: significava uma ruptura entre Argentina e Grã-Bretanha, que vinham tentando se entender desde 1979, sem sucesso. “O país em que nasci estava em guerra com o país que me adotou. Era como se dois de meus irmãos estivessem brigando”, relatou Ardiles ao documentário White, Blue and White.

A Guerra das Malvinas eclodiu no dia 02 de abril, na véspera da semifinal da FA Cup de 1981-82. O ditador argentino Leopoldo Galtieri, em um movimento desesperado, tentando salvar seu regime, econômica e politicamente falido, decidiu enviar tropas às Ilhas Malvinas, ocupadas pelos britânicos desde o final do século XIX. Esperava, dessa forma, unir o país em torno de uma causa nacionalista.


Ardiles entrou em campo no dia 3, na partida contra o Leicester City, e foi recebido por vaias duras e constantes. Ricky ficou fora desse jogo. A paixão nacional pelo talento dos sul-americanos havia acabado — apenas a torcida do Tottenham, em sua maioria, permaneceu apoiando os jogadores, afinal eram ídolos.

Após a semifinal, Ardiles retornou à Argentina em atenção à preparação para a Copa do Mundo que seria sediada na Espanha — Villa não foi chamado dessa vez. Na Inglaterra, porém, a repercussão foi a pior possível. 

O discurso de que Ossie havia escolhido seu lado se propagou. E o mais insólito foi que, de repente, ele também não era mais bem quisto em seu país natal: era visto como traidor. Subitamente, o homem de duas pátrias se viu sem lar. Sem lar e sem seu primo, José, piloto que desapareceu durante o conflito e mais tarde teve a morte confirmada. Para piorar, a participação da Albiceleste no Mundial foi um desastre, com a antiga campeã terminando em 12º lugar.

Para Villa, a repercussão do conflito também foi duríssima. Entretanto, o fato de ter permanecido em solo inglês e o foco em Ardiles diminuíram um pouco as implicações para ele. Mesmo assim, o atleta, em acordo com o Tottenham, decidiu que seria mais prudente não disputar aquela final da FA Cup. Sem seus argentinos, os Spurs conquistaram o bicampeonato, batendo o Queens Park Rangers no replay: 1 a 0, gol de Hoddle.


Perdido em pensamentos, sem chão e sem casa, Ardiles se viu sozinho no mundo. A guerra acabou em 14 de junho daquele mesmo 1982, com uma derrota humilhante para os argentinos, que sequer tinham noção do que acontecia, já que o forte controle à imprensa, imposto pelos militares, consolidava a crença de que a vitória sul-americana era iminente. Na verdade, era o contrário que acontecia.

Sem clima, mas com tempo para renascer


Ossie decidiu conversar com a direção do Tottenham e pediu uma transferência. Os comandantes dos Spurs concordaram em parte, emprestando-o ao Paris Saint-Germain. Na capital francesa, o inferno de Ardiles não acabou. Segundo o próprio, foi lá que viveu seu pior momento futebolístico, foram apenas 17 jogos e um gol. Entretanto, o período serviu para esfriar os ânimos. Ele retornou a White Hart Lane ainda durante a temporada 1982-83.

Na volta, viu Ricky partir para os EUA, mas teve tempo para deixar mais uma marca indelével na história do Tottenham, reafirmando sua condição de ídolo. 

Em 1983-84, já não gozava da condição de titular absoluto da equipe, mas participou da campanha que levou o time londrino ao seu segundo título da Copa da UEFA, saindo do banco no jogo decisivo e participando da jogada do gol que levou a partida para os pênaltis.

Ardiles PSG
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólog

Na ocasião, dentro da pequena área acertou o travessão, viu a defesa do Anderlecht, afastar a bola, que voltou aos pés ingleses. Logo, foi levantada outra vez na área belga e, dessa vez, encontrou o fundo do barbante, por obra do zagueiro Graham Roberts.

Ardiles permaneceu nos quadros do Tottenham até 1988 e voltou em 1993, como treinador. Em 2008, juntou-se a Ricky e retornou outra vez a Londres, onde receberam merecido lugar no Hall da Fama do clube.


O peso dos tempos da Guerra das Malvinas passou, mas a memória não se apaga. Ossie e Ricky recuperaram a condição de cidadãos de duas pátrias, porém as marcas daqueles tempos nunca os abandonaram. O que teria sido de suas trajetórias no clube sem a guerra? Como teria sido a vida pessoal de Ardiles sem a dor da perda de seu primo? Os questionamentos existem, mas servem apenas para reafirmar a força dos atletas, que superaram uma das piores solidões pela qual pode passar um ser humano.

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