Nos anos 1980, a Atalanta fez quase tudo ser possível

Entre Milão e Bréscia, está Bérgamo. Na Lombardia, onde o azul e o preto notabilizam a Internazionale, um time de futebol alvinegro se juntou a outro alviazul. Eram os anos 1920. O branco se perderia, originando outra equipe nerazzurri na região, a Atalanta Bergamasca. Diferentemente da rival milanesa, viveria à margem das glórias — exceto por uma isolada Coppa Italia nos anos 1960, abocanhada a partir do talento de Angelo Domenghini, depois ídolo da Inter. Conquistas e noites europeias quase nunca estiveram ao alcance da Dea. Quase.

Atalanta 1987-88
Foto: Domínio Público/Arte: O Futebólogo


Saindo do fundo do poço


A estabilidade vivida nos anos 1950 e 60, mormente passados na elite do futebol italiano, acabou na década seguinte. Gradualmente, a Atalanta setentista perdeu o estatuto de equipe de primeira, mesmo que fosse capaz de revelar talentos como o de Gaetano Scirea. No encerramento da década, um rebaixamento à Série B — o segundo de um decênio marcado por cinco temporadas no escalão de acesso — foi mau augúrio. O trabalho de Battista Rota, ídolo tanto como atleta quanto treinador, perdia fôlego.

O vínculo com o comandante, iniciado em 1976, terminaria no mesmo lugar em que começou, a segundona. O acesso do início do trabalho não seria suficiente para reforçar a crença de que Rota poderia recolocar a Atalanta nos trilhos. No entanto, nem toda mudança de caminho leva a um destino feliz. Outro ex-jogador da Dea seria chamado a resgatar a equipe. Porém, a gestão de Bruno Bolchi seria desastrosa e ele seria demitido no meio de uma temporada que acabaria em descenso à Série C1.

Parecia que a direção bergamasca, liderada pela família Bortolotti, acreditava que a Atalanta deveria ser sempre treinada por alguém com raízes no clube. A carreira do bresciano Ottavio Bianchi como técnico estava no início e não decolava. Jogador dos Nerazzurri nos anos 1970, seria o responsável por tirar a equipe do inferno. O título da terceira divisão, com apenas duas derrotas em 34 partidas, prenunciava um tempo de crescimento, mas não tão imediato.

Ottavio Bianchi Atalanta
Foto: Reprodução

Bianchi seria o primeiro de três técnicos determinantes para a década de 1980 da Atalanta. Não conseguiria o acesso imediato à elite, mas se projetaria. Um ano na Série B bastaria para o Avellino, então no primeiro escalão, convencer o treinador a mudar de ares. Quem deu prosseguimento à construção que estava em andamento foi Nedo Sonetti, em anos, o primeiro comandante sem passagem pelo clube como atleta.

Sonetti chegava da modesta Sambenedettese. A equipe terminara a Série B 1982-83 uma posição atrás da Atalanta, mas com o mesmo número de pontos. Vale lembrar que, ainda em decorrência de punições administrativas por participação no escândalo do Totonero, Milan e Lazio andavam na segunda divisão, aumentando consideravelmente o nível de dificuldade da disputa.

Liderada tecnicamente pela presença de Roberto Donadoni no meio-campo, outro destaque das categorias de base da Dea, a equipe conseguiu o acesso à Série A. Vencendo um duelo renhido com o Como, foi a campeã da segundona em 1983-84.

Roberto Donadoni Atalanta
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

A agridoce temporada 1986-87


O retorno à elite, entre outras coisas, garantiu à Atalanta a possibilidade de voltar a contratar nomes importantes no mercado. Foram feitas duas apostas no futebol sueco. Do Malmö, foi recrutado Lasse Larsson. Herdeiro da geração vice-campeã europeia em 1978-79, era o primeiro reforço para o ataque. O outro era um meio-campista de 1,91m. Vinha do Benfica, mas tinha um longo histórico pelo IFK Göteborg: Glenn Strömberg.

Enquanto o primeiro mal jogou, perdendo quase a totalidade da temporada 1984-85 machucado, o segundo construiu história. No entanto, o início seria duro. “Os primeiros meses foram chocantes para mim. Tive que me adaptar a um estilo de jogo diferente, muito mais tático e defensivo. Com Göteborg e Benfica, jogava para ganhar; com a Atalanta, para evitar a derrota”, diria ao site oficial da UEFA Champions League.

Nas duas primeiras temporadas após a volta à elite, a Atalanta cumpriu o seu papel. Terminou em décimo e oitavo lugares, respectivamente — nos dois casos, seis pontos à frente do primeiro rebaixado. Strömberg mostraria alto nível, eleito o melhor jogador sueco de 1985. Neste ano, ganharia, inclusive, a importante companhia de Cesare Prandelli, que retornou a Bérgamo, após seis temporadas na Juventus.

Glenn Strömberg Atalanta
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Além disso, a equipe satisfez seu torcedor. Na 17ª rodada, em viagem a Milão, a Dea bateu a Inter por 3 a 1. O atacante Fulvio Simonini e o meia Roberto Soldà anotaram os tentos, com Karl-Heinz Rummenigge descontando. Os ares de uma tranquilidade estranha à história da Atalanta pareciam sugerir que turbulências viriam. A temporada 1986-87 batia à porta.

Se, por um lado, os bergamascos fizeram muito dinheiro negociando Donadoni com o Milan, e Soldà com a Juventus, por outro apostaram em uma estrela internacional: o inglês Trevor Francis, bicampeão europeu com o Nottingham Forest e que andava na Sampdoria, desde 1982. Também o futuro ídolo Valter Bonacina chegaria, desde o Virescit Boccaleone.

No entanto, logo ficou evidente que as coisas não caminhariam bem na Série A. Nas primeiras dez rodadas, a Atalanta perdeu seis vezes, empatou três e venceu apenas o Empoli, em casa.

Àquele triunfo se somariam mais seis, contra Brescia, Fiorentina, Sampdoria, Verona, Udinese e, novamente, Inter. Na última rodada, a Dea precisava vencer, outra vez, a Fiorentina e torcer por derrota do Brescia. Só assim evitaria mais um trágico rebaixamento à segundona. Agonicamente, perdeu com gol marcado no último minuto do tempo regulamentar, obra de Alberto Di Chiara. Nos critérios de desempate, a Atalanta teria permanecido com uma vitória simples.


Mas não era o fim da linha para o treinador Nedo Sonetti. Ainda não. A campanha horrorosa no Campeonato Italiano contrastava com a empreendida na Coppa Italia.

Depois de liderar um grupo com Brescia, Virescit Boccaleone, Genoa, Messina e Palermo, nos mata-matas, a Atalanta deixou Casertana, Parma e Cremonese pelo caminho. O problema era o desafio final. Treinado por um velho conhecido dos bergamascos, Ottavio Bianchi, o Napoli tinha se tornado temido, muito em função do poder de fogo do ataque Ma-Gi-Ca, com Diego Maradona, Bruno Giordano e Andrea Carnevale.

A parada foi decidida já na partida de ida, em Nápoles. No Stadio San Paolo, curiosamente, nenhum dos três gols dos Partenopei saiu diretamente dos pés de seus astros ofensivos. Coube a Alessandro Renica, Ciro Muro e Salvatore Bagni anotar os tentos da impositiva vitória sulista: 3 a 0. Em Bérgamo, sim, apareceria a estrela de Giordano, dando números finais à decisão, 1 a 0.


A Atalanta dos Milagres


Enquanto o capitão Marino Magrin decidiu trocar a Dea pela Juventus, e Francis voltou ao Reino Unido para vestir a camisa do Rangers, treinado pelo amigo Graeme Souness, Strömberg permaneceu. Ali começava o ponto de virada em sua relação com a equipe. O sueco deixava de ser um bom jogador para se tornar ídolo. “Senti minha parcela de responsabilidade e queria resolver isso”, falou o meio-campista, que se tornaria capitão da equipe agora comandada por Emiliano Mondonico, o terceiro pilar da década nerazzurri, que acabara de garantir a permanência do Como na elite italiana.

Embora rebaixada, a Atalanta disputaria a Recopa Europeia. O Napoli vencera a Série A e não poderia disputar duas competições continentais, já estando na Copa dos Campeões da Europa. Era uma situação, no mínimo, inusitada. A Itália seria representada por uma equipe da segunda divisão, não de segunda divisão. O uso das palavras faz diferença. A presença bergamasca na Série B se tratava de um estar, não de um ser.

A marca da competição de acesso seria o equilíbrio. De que outra forma se poderia explicar que o campeão, Bologna, empataria 17 de seus 38 jogos? E o Lecce, o vice, 15? A Atalanta, por sua vez, terminou 19 partidas em igualdade. E, com o segundo melhor ataque do certame, conseguiu o acesso imediato, com o quarto lugar — atrás também da Lazio. O trabalho de Mondonico começava melhor do que a encomenda.

Emiliano Mondonico Atalanta
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Também na Recopa, a Atalanta mostraria valor. “Nossa principal e única prioridade era voltar direto para a Série A. Então, abordamos aquelas noites europeias sem muita pressão. Esse foi o segredo de nossa incrível campanha. Naquela época, éramos o único clube italiano ainda em uma competição europeia. Foi tão emocionante. Nós nos tornamos o segundo time para a maioria dos torcedores italianos”, recordou Strömberg.

A disputa começaria no País de Gales, contra o Merthyr Town. Mal, diga-se. Os donos da casa venceram por 2 a 1. A decisão ficaria para o Stadio Comunale, onde a Atalanta precisou de 21 minutos para liquidar a fatura: 2 a 0. A história se repetiria na rodada seguinte, diante dos gregos do OFI Creta. Em Salônica, os helênicos largaram em vantagem, 1 a 0. Na Lombardia, a Dea voltaria a vencer por duas bolas a zero.

O primeiro grande desafio viria nas quartas de finais. Do outro lado da disputa estava o Sporting Clube de Portugal, do veteraníssimo goleiro Vítor Damas. Dessa vez, a partida de ida seria na Itália. Seguindo uma espécie de regra bizarra, a Atalanta venceu de novo por 2 a 0. Na volta, a equipe se segurou como pôde. O holandês Peter Houtman deu a vantagem aos Leões, mas o goleiro Ottorino Piotti esteve em grande forma. No apagar das luzes, Aldo Cantarutti empataria a contenda, dando-lhe números definitivos.


“Vocês falarão da Atalanta dos Milagres”, teria dito o treinador após a partida. A fala tinha um quê de resposta à imprensa, que o criticara duramente após as derrotas no País de Gales e na Grécia. “Críticas que talvez tenham nos ajudado a vencer o Sporting”, acrescentaria. O sonho de uma conquista europeia estava cada vez mais vivo.

Na altura, somente a Atalanta seguia viva nas competições europeias, entre todas as equipes italianas. “Solo noi, solo noi, in Europa solo noi”, entoavam as arquibancadas bergamascas. As semifinais começariam a ser disputadas em solo belga, contra o Mechelen. O time treinado por Aad de Mos, e que tinha o goleiro Michel Preud’homme na meta e vários destaques, como o holandês Erwin Koeman, era forte e provou. Venceu por 2 a 1.

Mais sonhos e, ao final, instabilidade


“A imagem que tenho diante dos meus olhos? Certamente a do estádio lotado. Uma visão sensacional. Foi especial, toda Bérgamo estava perto de nós. Aqueles que tiveram a sorte de estar lá sempre carregarão algo realmente grande dentro de si”, falaria Bonacina. O melhor time da história do Mechelen completaria o trabalho na Lombardia. O sonho italiano seria reavivado quando Oliviero Garlini converteu um pênalti e abriu o marcador. Porém, Graeme Rutjes e Marc Emmers espantaram a zebra.


Não era tão importante que a Atalanta vencesse a Recopa. O retorno à elite estava assegurado e seria temperado pela contratação do centroavante Evair, junto ao Guarani. E a história seguiu sendo escrita na Série A 1988-89. Consciente de suas limitações, a Dea fez um campeonato seguro. Não deu espetáculo, mas acabou numa excelente sexta colocação, classificada para a Copa da Uefa do ano seguinte. Evair marcaria 10 gols.

A campanha europeia seria ruim, parando imediatamente nos russos do Spartak Moscou. No entanto, o fôlego do time estava longe do fim, sobretudo porque o ataque ganhara o importante acréscimo do argentino Claudio Caniggia. Agora sétimo colocado, o time voltou a se classificar para a Copa da Uefa. Na entrada dos anos 1990, haveria mais futebol europeu para os bergamascos, em uma nova epopeia.

Em queda no Campeonato Italiano, que terminaria em 10º lugar, a Atalanta reviveu o sonho europeu, já sem Mondonico, que partira para o Torino, abrindo espaço para a contratação de Pierluigi Frosio.

A equipe deixou pelo caminho Dínamo Zagreb, Fenerbahçe e Colônia. Mas se encontrou com uma velha e indesejada adversária, a Internazionale. Impulsionada por seus alemães, Lothar Matthäus, Jürgen Klinsmann e Andreas Brehme, a Beneamata tinha um time poderoso. Que foi contido em Bérgamo: 0 a 0. Porém, na volta, Aldo Serena e Matthäus forçaram a Atalanta a acordar.


Passariam-se 26 anos até a Atalanta retornar aos palcos continentais. Ainda assim, a estabilidade duraria mais um pouco. Sem Evair negociado com o Palmeiras, envolvendo a ida de Careca Bianchesi para a Itália, e também sem Bonacina, agora na Roma, o time terminaria a Série A de 1991-92 em 11º lugar. Já sob a batuta de Marcelo Lippi, subiria para o oitavo posto, no ano seguinte. 

Era o último suspiro de um time consolidado na elite, que perderia seus melhores jogadores em pouco tempo.

Strömberg penduraria as chuteiras, enquanto Caniggia seguiria seu caminho na Roma. É bem verdade que a equipe contrataria nomes importantes como os do argentino Leonardo Rodríguez, do brasileiro Alemão, do uruguaio Paolo Montero ou dos italianos Roberto Rambaudi, ex-Foggia, e Maurizio Ganz, ex-Brescia. Em parte, o insucesso de alguns caros contratados justificaria as dificuldades da equipe nos anos seguintes.

Roberto Rambaudi Atalanta
Foto: Alamy/Arte: O Futebólogo

Em 1993-94, a equipe voltaria a ser rebaixada, retomando seu caráter de time ioiô, mesmo retornando após apenas um ano. Suas categorias de base manteriam a fecundidade, produzindo atletas como Alessio Tacchinardi, mas nada evitaria outro descenso em 1997-98. Os ares da constância só voltariam a ser respirados décadas mais tarde, com a contratação do treinador Gian Piero Gasperini.

A Atalanta ficou próxima de fazer história algumas vezes, entre os anos 1980 e o início da década de 90. No entanto, feitos heróicos de lado, a equipe segue em busca de um verdadeiro milagre.

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