In memoriam: o primeiro título europeu do Manchester United

Duncan Edwards poderia ter sido tão famoso quanto Bobby Charlton, Denis Law ou George Best. Em 1957, ainda um dos mais promissores entre os Busby Babes, terminaria o Ballon d’Or em terceiro lugar, empatado com Raymond Kopa. Também naquele ano, o centroavante Tommy Taylor acabaria a premiação em 10º. Não se podia imaginar que, meses mais tarde, passariam à eternidade, a partir de um desastre. Porém, haveria sobreviventes. Uma década mais tarde, após toda sorte de dificuldades, o Manchester United chegaria ao topo, honrando as vítimas e aliviando o fardo dos que ficaram.

Manchester United 1967-68
Foto: Alamy/Arte: O Futebólogo


“É disso que se trata o clube”


A história é conhecida. Em fevereiro de 1958, vivo na disputa da Copa dos Campeões da Europa, o Manchester United buscava o primeiro título continental dos ingleses. Treinado por Matt Busby, um grupo de atletas jovens, em grande parte oriundos das categorias de base dos Red Devils, vinha de um bicampeonato nacional e de um pentacampeonato na FA Youth Cup; pleiteava, com força, a glória europeia. Entre eles, Charlton e Bill Foulkes.

Na altura, a Football League — notadamente o secretário Alan Hardaker — não aprovava que suas equipes disputassem a taça continental. As partidas no meio de semana prejudicavam o desempenho das equipes no Campeonato Inglês, pensava. De todo, o posicionamento não surgia como um devaneio. Viajar longas distâncias não era fácil, barato, rápido e, muito menos, confortável.

Tendo vencido os iugoslavos do Partizan na partida de ida das quartas de finais da Copa dos Campeões, 2 a 1, os mancunianos fretaram os voos de ida e volta, na visita a Belgrado. Além dos motivos óbvios da escolha, as dificuldades experimentadas no retorno de Praga, após o confronto ante o Dukla na rodada anterior, motivaram a direção do United a agir zelosamente. Independentemente do que a eliminatória reservasse aos ingleses, a equipe voltaria tão fresca quanto possível, pronta para o próximo compromisso nacional.

Depois de um empate equilibrado ante os eslavos, 3 a 3, os atletas dormiram nos Bálcãs; voltariam a Manchester no dia seguinte, 6 de fevereiro. Em dois trechos, necessários ante a compulsória parada para abastecimento em Munique, a viagem começou tranquilamente. Porém, na hora de deixar a Baviera, as duas primeiras tentativas de decolagem falharam. Os passageiros voltaram às dependências do aeroporto, aguardando uma terceira tentativa.


Em meio a uma nevasca e o barro, o avião tentaria decolar 15 minutos mais tarde. Não alcançaria a velocidade necessária, derraparia e se chocaria com a grade do aeroporto, ultrapassando-a até atingir uma casa e, em algum momento, explodir. 23 pessoas, entre tripulantes, atletas e membros da comissão técnica do Manchester United, e jornalistas faleceram.

Gravemente ferido, Matt Busby ficou afastado de suas funções por um tempo. O auxiliar Jimmy Murphy não tinha viajado, devido a compromissos da seleção galesa — que comandava — e assumiu a missão quase impossível de impedir o fim do clube. Às pressas, remendou um time para completar a temporada, em parte com jogadores emprestados desde o modesto Bishop Auckland. No entanto, seriam necessários anos para se abrir uma nova rota para o clube.

Boa parte das respostas seria buscada nas categorias de base. “É disso que se trata o clube. Está em seu DNA”, diria Jimmy Murphy Jr, mais de sessenta anos mais tarde. Ainda assim, o caminho seria tortuoso e longo. “Eu não disse muito na volta para casa, e tinha que me convencer, na companhia dos meus, de que o futebol poderia, novamente, ocupar o centro da minha vida. É claro que logo eu saberia disso. O que demoraria um pouco mais para entender é que nada mais seria tão simples”, afirmaria Charlton.


Subindo degraus


Foi com heroísimo que o Manchester United terminou a temporada 1958-59 com o vice-campeonato inglês, seis pontos atrás do Wolverhampton. Contudo, o desempenho fora da curva não se repetiria no curto prazo. Após dois sétimos lugares, o United cairia para o dramático 15º, em 1961-62, e para o 19º, na temporada seguinte. Entretanto, o flerte com o descenso contrastaria com a campanha empreendida na FA Cup.

A partir da terceira fase copeira, em que os times das duas principais divisões nacionais entravam, os Red Devils superaram Huddersfield Town, Aston Villa, Chelsea, Coventry City e Southampton, no caminho à decisão diante do Leicester City. O time vinha se reencontrando.

O goleiro Harry Gregg, um dos heróis no desastre, tanto por ter sobrevivido quanto por ter ajudado a resgatar os demais, convivia com lesões e cedia lugar a David Gaskell. O lateral Tony Dunne fora encontrado no Shelbourne, da Irlanda; o ala Maurice Setters, no West Bromwich; e o atacante Albert Quixall, no Sheffield Wednesday. Mais importantes ainda seriam o meio-campista Pat Crerand, ex-Celtic; o atacante David Herd, vindo do rival Arsenal; e o craque Law, então adorado pela torcida do Manchester City, e que retornava à cidade, depois de uma temporada bem louca no Torino.

Denis Law signs for Manchester United
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Isso explicava parte da evolução. A outra correspondia às categorias de base, representadas naquela altura por Johnny Giles, mais tarde ídolo do Leeds United. A prova cabal disso viria no ano seguinte, com o United retomando o título da FA Youth Cup, alinhando jogadores como o goleiro Jimmy Rimmer, além do polivalente David Sadler e do craque George Best.

“Matt [Busby] tinha a visão para levar os melhores sub-15 da Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales para Old Trafford. Ninguém antes dele tinha feito isso. Mais do que isso, teve a coragem de colocar esses jovens jogadores no time, daí tivemos os Busby Babes. Mas Matt não era tão bom no jogo tecnicamente quanto Jock Stein ou Don Revie. Ele não treinava muito. O que Matt tinha era uma grandeza. Ele nos falava muito pouco antes de uma partida. Tudo o que dizia era: ‘Vá e aproveite’. Ele nos dava liberdade”, relataria Giles, ao Evening Standard.

Voltando à decisão da FA Cup de 1962-63, o Leicester representava um obstáculo grande para os Red Devils. No Campeonato Inglês, os Foxes haviam terminado em quarto lugar. Nos confrontos da temporada corrida, os adversários ficaram no empate, 2 a 2, em Old Trafford. Porém, em Filbert Street, o time do goleiro Gordon Banks se sobressaíra, 4 a 3, com hat-trick de Ken Keyworth.


99.604 pessoas se espremeram em Wembley para acompanhar o embate entre vermelhos e azuis. O time das East Midlands poderia, tranquilamente, ter largado em vantagem nos primeiros minutos. Passado o sufoco inicial, os mancunianos tomaram conta do jogo. Aos 30’, Crerand pressionou a retaguarda do Leicester, recuperou a bola e passou para Law abrir a contagem. Aos 57’, um rebote mal feito por Banks, após chute de Charlton, sobraria para Herd: 2 a 0. Keyworth diminuiria, mas cinco minutos antes do fim, Herd se aproveitaria de nova falha do arqueiro rival, definindo o resultado: 3 a 1.

O triunfo no mata-mata era exatamente o que o Manchester United precisava para se reerguer. Em 1963-64, introduzindo Best entre os profissionais, os Red Devils foram até as quartas de finais da Recopa Europeia — superados pelo Sporting — e ficaram com o vice-campeonato nacional, vencidos pelo rival Liverpool. No ano seguinte, 1964-65, superior ao Leeds United nos critérios de desempate, o United voltaria a vencer o campeonato nacional. Era a primeira libertação. O clube disputaria, outra vez, a Copa dos Campeões da Europa.

Manchester United FA Cup 1963 Leicester
Foto: PA/Arte: O Futebólogo

Encarando os traumas de frente


Era indubitável: o Manchester United encontrara um caminho, após ser obrigado a se reconstruir. As conquistas recentes, bem como a capacidade para atrair e produzir talentos, evidenciavam as qualidades e desejos do treinador Matt Busby e de sua comissão técnica. A trajetória, apesar disso, não seria de crescimento linear.

O título do Campeonato Inglês não se renovaria, com os mancunianos terminando o certame na quarta colocação, com 10 pontos de inferioridade relativamente ao Liverpool. Na FA Cup, a corrida terminaria nas semifinais, com derrota para outro liverpuldiano, o Everton. Já a disputa europeia reservaria um momento emocionalmente singular para a equipe.

O United varreu os finlandeses do HJK, com um placar agregado de 9 a 2. Impôs semelhante destino aos alemães orientais do Vorwärts Berlin, 5 a 1, e ao tradicional Benfica, vice-campeão no ano anterior, 8 a 3 (com exaltada atuação de Best). Assim, avançou às semifinais. Faltavam três partidas para o clube se tornar o primeiro britânico a conquistar a Europa. Mas o time ainda não tinha feito as pazes com o passado. Pudera, sequer uma década transcorrera.


No dia 13 de abril de 1966, às vésperas da Copa do Mundo, os Red Devils subiram ao gramado do Estádio JNA, em Belgrado. O Partizan, que entre outros contava com o líbero Velibor Vasović, entrava outra vez no caminho de Busby e seus comandados. Charlton lembraria aquele momento: “Estávamos refazendo os passos que nunca deixaram de nos assombrar”, recordou ao Independent.

O cenário era sensível ao United, mas o Partizan também encarava o confronto com reservas. Depois da demolição que os ingleses impuseram ao Benfica, os iugoslavos temiam por seu próprio destino. Porém, Best não estava em seu melhor, com uma lesão de cartilagem, sofrida na FA Cup. Depois de um primeiro tempo sem graça, os anfitriões acordaram na etapa final. “Eles perceberam que nos superestimaram e começaram a jogar”, contou o goleiro Gregg. Apito final: 2 a 0 Partizan.

A hora da redenção ainda não chegara. Com gol de Nobby Stiles, o United venceria na volta, mas o resultado seria insuficiente. Promissora no início, a temporada 1965-66 acabaria com os Red Devils de mãos vazias, apesar dos vários momentos de brilhantismo.


Para Stiles, Charlton e John Connelly, entretanto, o ano ainda não se esgotara. Selecionados para a Copa do Mundo, ajudariam a Inglaterra a — não sem polêmica — vencer o certame. Os dois primeiros voltariam ao clube com a chama das vitórias reacesa, enquanto o terceiro acabaria negociado com o Blackburn. Ao final do ano, inclusive, Charlton seria coroado Ballon d'Or. Inapelavelmente, os mancunianos reconquistaram o título inglês, superando o Nottingham Forest, desta vez.

A hora da verdade


Com mais um Campeonato Inglês em sua sala de troféus, o Manchester United entrou na temporada 1967-68 faminto. Havia o entendimento de que o título europeu já deveria ter sido alcançado duas temporadas antes, mas, agora, um componente extra deixava a necessidade ainda mais evidente: o primeiro título da Copa dos Campeões de uma equipe britânica não era inglês, mas escocês. No ano anterior, o Celtic superara a Internazionale, recebendo a orelhuda. O orgulho nacional estava em jogo e, como representante da Inglaterra, o United seria incumbido de vencer.

Naquele ano, George Best só não fez chover. No Campeonato Inglês, anotou assombrosos 28 gols, ficando com a artilharia do certame, ao lado de Ron Davies, do Southampton. Não obstante, o foco da equipe se voltaria para a competição europeia. Por dois pontos, os Red Devils acabariam superados pelo rival local, o Manchester City. Apenas a conquista continental aplacaria a decepção com o título nacional dos Citizens.

A corrida europeia começou com grande facilidade. De cara, os mancunianos despacharam os malteses do Hibernian, 4 a 0. Na sequência, outra vez, precisaram viajar aos Bálcãs, mas para Sarajevo. O time homônimo se segurou na condição de anfitrião, garantindo um empate sem gols e forçando os ingleses a vencer em casa, o que fizeram. John Aston, mais um revelado pelo clube e beneficiado pela saída de Connelly, abriu a contagem logo aos 10 minutos. Best aumentaria a vantagem. No cortinar da partida, Salih Delalić diminuiria, sem provocar efeitos concretos no desfecho do encontro.

George Best Manchester United City
Foto: Tomikoshi Photography/Arte: O Futebólogo

Na etapa seguinte, outro prata da casa faria a diferença. Diante dos poloneses do Górnik Zabrze, o Manchester United se adiantou já na partida de ida, em Old Trafford. Um gol contra e um tento do menino Brian Kidd renderam vantagem aos ingleses, derrotados na volta: 1 a 0. O time vinha caminhando, mas sem a exuberância de dois anos antes. Esta, todavia, seria exigida na rodada seguinte. O maior campeão do certame, Real Madrid, entrava no caminho dos comandados de Matt Busby. Antes da partida, o treinador declarara qual caminho o time deveria seguir:

“Se pudermos ir a Madrid para a partida de volta com uma vantagem de dois gols, acredito que estaremos a caminho da final. O fato dela ser disputada em Londres é um tremendo incentivo”, alertou.

Pelo lado britânico, Foulkes e Charlton remanesciam da equipe eliminada pelos madridistas em 1956-57; pelo espanhol, Francisco Gento era o último presente. Mesmo machucado, Law acabaria escalado. O único gol da partida surgiria de um cruzamento de Aston para Best. O time vencera, mas sem alcançar a vantagem desejada por seu treinador. Crerand acertaria a trave, enquanto Charlton levaria perigo em cobrança de falta. Nada que tenha sido capaz de alterar o placar: 1 a 0.


Três semanas mais tarde, o United viajou à capital espanhola. Não seria necessário muito tempo para as previsões de Busby parecerem verdadeiras. Aos 41 minutos do primeiro tempo, com gols de Pirri e Gento, o Real vencia por 2 a 0, colocando por terra a vantagem inglesa. Até o final da etapa inicial, Ignacio Zoco, contra, recolocaria os Red Devils na partida, mas Amancio logo faria o 3 a 1. Esse placar se arrastaria.

A questão é que os prognósticos, não raro, se equivocam diante da imprevisibilidade do jogo de futebol. De quem menos se esperava, os dois zagueiros da ocasião — Foulkes e Sadler —, viria a recuperação vermelha. Aos 73 e aos 78 minutos de jogo. O 3 a 3 seria suficiente para colocar o Manchester United em sua primeira decisão europeia.

“A coisa mais bonita que já aconteceu na minha vida”


Finalistas, os Red Devils enfrentariam um velho conhecido, sedento por vingança. O Benfica podia não ter o frescor do início da década, mas ainda compunha a espinha dorsal da seleção portuguesa — terceira colocada no Mundial de 1966 — e, acima de tudo, tinha Mário Coluna e Eusébio em seus quadros. No entanto, o jogo era em Wembley, uma casa em que o Pantera Negra nunca vencera.

Por sua vez, o Manchester United não tinha Law, operado de um joelho. Stiles também não chegava com as melhores condições. No entanto, o volante acabou escalado. E anulou Eusébio. A partida seria dura, faltosa. Após um primeiro tempo feio (31 infrações marcadas), vestido de azul escuro, Charlton completou, de cabeça, um cruzamento de Dunne. Era o 1 a 0. A vantagem duraria 26 minutos. Depois de um levantamento na área inglesa, Jaime Graça empataria. E o jogo se encaminharia para a prorrogação.

Com seu time cansado, Busby temeu que as pernas fossem fraquejar na Hora H. Mas a equipe mais veterana era o Benfica. Foram necessários dois minutos para brilhar a estrela de Best, inevitavelmente o Ballon d'Or do ano. Ele driblou o goleiro José Henrique e devolveu a vantagem ao Manchester United. Que se tranquilizou, enquanto os Encarnados se desestruturaram. Aos 94’, Kidd faria mais um, cabeceando duas vezes. Cinco minutos depois, com a classe habitual, Charlton concluiu um cruzamento de Kidd: 4 a 1. 

A redenção mancuniana demorara uma década. Mas viera.


Vencido o jogo, era a hora de lembrar a motivação que levara o Manchester United até ali. “Quando Bobby [Charlton] levantou a taça, isso me limpou. Aliviou a dor da culpa de ir jogar o campeonato europeu. Foi a minha justificação. Esta é a coisa mais bonita que já aconteceu na minha vida. Tive muitas decepções, mas isso compensou tudo [...] Estou orgulhoso de todos eles [...] Achei que venceríamos na prorrogação porque estávamos com o coração bom. Eles fizeram isso contra o Real Madrid, voltaram com o coração novamente e mostraram do que o Manchester United é feito”, falou, emocionado, Busby.

O capitão, e sobrevivente, também refletiria sobre o ocorrido. “Foi uma noite maravilhosa porque colocou as coisas em ordem. Aconteceu o acidente, essa grande tragédia e perda. Isso [o título] ajudou Matt Busby. Foi sua equipe, seus rapazes que morreram [...] Ele se sentiu responsável. O United era um clube familiar e ele era o pai, então você pode imaginar que, quando aconteceu, foi uma tragédia que o atingiu mais do que qualquer outra pessoa”, pontuou Charlton, à agência Reuters.

Manchester United Benfica 1968 Extra Time
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo

Foram 10 anos entre o Desastre de Munique e a conquista da Copa dos Campeões. Evidentemente, uma conquista esportiva jamais se sobreporá às perdas humanas. O triunfo não dizia respeito a isso, era sobre honrar as vidas perdidas e, além de tudo, alentar as que seguiram. Por anos, Charlton se perguntou porque fora "privilegiado" com a preservação de sua vida. Busby se sentia culpado. Isso por uma horrível fatalidade.

As missões deles, entretanto, ainda não se haviam completado. Não prescindiriam de trabalho duro. Dependeriam de valorosos esforços, e de estrutura mental e emocional. Coisas que, de fato, demandam tempo. A vitória foi a libertação, tanto para os que precisam viver quanto para aqueles que buscavam descansar em paz. Um pacto justo entre vida e morte.

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