O canto do cisne da URSS na Euro 1988

A URSS viveu uma relação íntima com a Euro. Desde a primeira edição, em 1960, fincou sua bandeira, não apenas vencendo o certame, mas provocando desconfortos — como o que levaria o ditador fascista Francisco Franco a proibir a Espanha de visitar os soviéticos nas quartas de finais. 28 anos mais tarde, os comunistas já não estavam tão fortes. Os efeitos da Estagnação de Brejnev obrigavam o país a mudar e o esporte não escapava da realidade. No entanto, o Exército Vermelho ainda deixaria uma última marca no futebol europeu.

URSS 1988
Foto: Juha Tamminen/ Arte: O Futebólogo


Abertura com Gorbachev e Lobanovskyi


Em 1985, a União Soviética entrou no que seria sua última fase. O sistema político desenvolvido a partir de 1917 apresentava sinais de exaustão. Embora a censura fosse eficiente, a população sentia no cotidiano a escassez de recursos decorrente da crise econômica vivida. A corrupção institucional no seio do Partido Comunista se associava à ineficiência estatal, refém do alto custo de um militarismo ostensivo, inerente à Guerra Fria. Nesse contexto, tanto setores críticos ao governo quanto alas pertencentes à burocracia dominante defendiam a necessidade de reformas.

Um rosto se destacaria, assumindo protagonismo. Em 15 de março, Mikhail Gorbachev assumiu a cadeira de secretário-geral do PC e, já no ano seguinte, entraram em ação perestroika, ou abertura (econômica e política), e glasnost, traduzida como liberdade de informação. A abertura caminhava, rumando para o fim da relação visceral entre partido e Estado, mas incapaz de aplacar incertezas quanto ao futuro.

Como ressaltado por Eric Hobsbawn, em A Era dos Extremos, “os reformadores desejavam ter as vantagens do capitalismo sem perder as do socialismo”. Um dos espelhos para os quais a URSS olhava era a China do pós-Maoísmo, com crescimentos espetaculares no PIB, nos anos 1980. Mas era um paralelo impossível. O estágio evolutivo entre os países era incomparável; a China ainda era majoritariamente rural.

Mikhail Gorbachev
Foto: David Longstreath/AP/ Arte: O Futebólogo

O historiador, todavia, sintetizaria as causas do insucesso da transição soviética: “A combinação de glasnost, que equivalia à desintegração da autoridade, com uma perestroika que equivalia à destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia mundial funcionar, sem oferecer qualquer alternativa”.

Os impactos para o futebol seriam evidentes. Em 1994, dos 22 selecionados para representar a Rússia, sucessora da URSS na Copa do Mundo, 12 atuavam no exterior, algo impensável anos antes. Os clubes locais estavam falidos e o Estado não interferia mais nos destinos dos atletas.

Seis anos antes, quando os soviéticos disputaram sua última Euro, os 20 escolhidos ainda representavam equipes nacionais apoiadas por instituições como Exército, Polícia e KGB. As mudanças mais drásticas ainda estavam em vias de acontecer. Todavia, novos ventos já sopravam pelo território soviético.

O treinador era um homem ucraniano: Valeriy Lobanovskyi, herdeiro dos ensinamentos de Viktor Maslov e lembrado como um homólogo soviético do holandês Rinus Michels. Simultaneamente treinador do Dínamo de Kiev, não fez nenhum esforço político para distribuir convocados entre as repúblicas que compunham a URSS: 11 eleitos eram seus atletas também no clube. Costumeiramente privilegiada, a Rússia tinha apenas quatro representantes, entre os quais o evidente Rinat Dasaev.

Valeriy Lobanovskyi
Foto: Getty Images/ Arte: O Futebólogo

Outras consequências seriam notadas em anos seguintes. Nos vácuos de poder, e diante do esfacelamento das instituições e da economia soviéticas, um novo empresariado seria formado, dominando os meios de produção soviéticos. Popularizar-se-ia a terminologia de “oligarcas” e ascenderiam figuras como Roman Abramovich, mais tarde proprietário do Chelsea e com influência no CSKA; Rinat Akhmetov, dono do Shakhtar Donetsk; além da empresa Gazprom, privada mas sob controle acionário da Rússia, proprietária do Zenit. Novos rostos para uma realidade não tão nova.

Como sintetizado pela belarussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura em 2015, no epílogo de Vozes de Tchernóbil, “deixamos passar a chance que tivemos nos anos 1990. Em resposta à questão: ‘O que devemos ser, um país forte ou um país digno onde as pessoas possam viver bem?’, escolhemos a primeira, um país forte”. Mas essas são histórias para outro momento.

Fazia sentido apostar no Dínamo de Kiev


Dois anos antes de a seleção soviética viajar à Alemanha Ociental para a disputa da Euro de 1988, a URSS registrara um de seus mais impressionantes resultados no futebol de clubes. No ocaso da carreira, Oleg Blokhin entregava seus últimos momentos de brilhantismo à frente do ataque do Dínamo de Kiev. E tinha companhia qualificada — não apenas o futuro Ballon d’Or, Igor Belanov. Também o lateral e capitão Anatoliy Demyanenko, os zagueiros Oleg Kuznetsov e Sergei Baltacha, os meio-campistas Ivan Yaremchuk e Vasil Rats, além dos criativos Aleksandr Zavarov e Alexei Mikhailichenko. Todos sob a tutela de Lobanovskyi.

Poucas vezes, a Recopa Europeia teve um vencedor tão dominante quanto em 1985-86. O Dínamo perderia apenas a primeira partida da disputa. Após, não só passaria ileso, como alcançaria resultados expressivos, verdadeiras goleadas.

A saga ucraniana começaria com o Utrecht. Não era o desafiante mais poderoso que a Holanda poderia entregar, mas vencera o PSV Eindhoven, que, por sua vez, eliminara o Ajax. Liderados por John van Loen, atacante que serviria a Oranje no Mundial de 1990, os Domstedelingen deram trabalho. Venceram em casa: 2 a 1. No entanto, em Kiev, mais de 94 mil pessoas empurrariam o Dínamo rumo à virada: 4 a 1; 5 a 3, no agregado.

Adiante, os romenos do Universitatea Craiova até buscaram um empate tardio, 2 a 2, na partida de ida da segunda fase. Mas, outra vez, em seus domínios, o Dínamo destruiu. E precisou de menos de 10 minutos. Aos sete, abriu o placar com Rats; aos 11, ampliou com Belanov; e, aos 13, definiu o jogo, com Demyanenko: 3 a 0. Vida pior teriam os austríacos do Rapid nas quartas de finais, como a soma dos placares evidencia: 9 a 2.

Dinamo Kiev 1985-86
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Nas semis, os tchecos do Dukla Praga também sucumbiriam já na ida, tombados por um 3 a 0 construído com dois gols de Blokhin e outro de Zavarov. O protocolar empate, na capital da Tchecoslováquia, 1 a 1, levaria os homens de Lobanovskyi à decisão. Tendo enfrentado Celtic, Bangor City, Estrela Vermelha e Bayer Uerdingen, o outro finalista, Atlético de Madrid, tivera vida mais dura que o Dínamo.

Os comandados do ícone Luis Aragonés nem tiveram tempo de respirar. Em Lyon, Zavarov vazou o goleiro argentino Ubaldo Fillol logo aos cinco minutos. O placar seria mantido até os momentos finais do jogo, quando Blokhin e Vadim Yevtushenko confirmaram o 3 a 0. O moderno 4-4-2 de Lobanovskyi, em que do meio para frente todos tratavam bem a bola, era uma máquina. Cortesmente, Aragonés não tinha outra coisa a fazer, senão elogiar seus contrapartes.

“O Dínamo fez uma verdadeira exibição. É uma equipe sensacional, já sabíamos disso, e ainda por cima fizeram um gol quando ainda estávamos frios, quebrando todos os nossos planos. Não há nada que se oponha à sua vitória [...] Houve cinco minutos na segunda parte em que finalmente alcançamos um certo nível. Mas, pouco a pouco, a equipe de Kiev retomou as rédeas de um jogo que sempre foi seu, sua superioridade foi inquestionável [...] O que está claro é que estávamos jogando contra um time que é a base da seleção da União Soviética”, relatou ao Mundo Deportivo.


Ele não estava errado. De fato, aquele coletivo estruturaria o selecionado soviético.

Cabe destacar, ainda, que naquela noite na Auvérnia-Ródano-Alpes, o time estava especialmente motivado. “Não posso negar que meus jogadores sabiam o que havia acontecido e que essa circunstância os deixou em uma situação moral francamente delicada. Mas eles mesmos estavam cientes de que tinham que superar e o fizeram”, relatou Lobanovskyi. A circunstância em questão era o Desastre Nuclear de Chernobil, ocorrido uma semana antes.

Esse time seria, ainda, semifinalista da Copa dos Campeões de 1986-87, superado pelo Porto, eventual campeão.

A busca da coroa perdida


O vínculo da URSS com a Euro, que se forjou sólido desde o princípio da disputa, andava abalado. O título de 1960 estava no passado, assim como os vice de 64 e 72. O presente revelava ausências consecutivas, em 76, 80 e 84. Contudo, além das performances do Dínamo de Kiev, as aparições recentes do Exército Vermelho em Copas do Mundo sugeriam que ele não podia ser desconsiderado entre os postulantes ao título de 1988.

Para chegar à fase final da disputa, os soviéticos precisaram liderar o Grupo 3 das Eliminatórias. Esperava-se que a França representasse o maior desafio, mas não foi bem assim. Em entressafra, os gauleses fizeram uma aparição fraca, permitindo o sucesso da Alemanha Oriental, de Ulf Kirsten, Olaf Thon e Matthias Sammer. Contudo, invicta, a URSS definiu a classificação no confronto direto. Venceu a RDA em Kiev, 2 a 0, gols de Zavarov e Belanov, e empatou em Berlim Oriental, 1 a 1. Islândia e Noruega não chegaram a representar qualquer ameaça.


Os soviéticos foram sorteados para o Grupo 2 da Euro, ao lado de Holanda, Inglaterra e Irlanda. Avalizada por uma geração que reunia nomes como os de Ronald Koeman, Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten, e treinada por Michels, a Oranje surgia como principal oponente. No entanto, esperava-se que os ingleses, com Chris Waddle, Glenn Hoddle, John Barnes e Gary Lineker — chefiados por Sir Bobby Robson — oferecessem perigo. Apenas a Irlanda, feliz com a primeira participação em torneios internacionais, inspirava tranquilidade para os oponentes, um engano.

A estreia diante dos alaranjados, com nove jogadores do Dínamo escalados, foi marcada por equilíbrio. As defesas de Dasaev e a trave, combinadas com um chute preciso de Rats, fariam a diferença no triunfo soviético: 1 a 0. O segundo jogo seria contra a Irlanda, que, surpreendentemente, vencera o dérbi contra os ingleses. E o Green Army seguiria fazendo história. Os comandados de Jack Charlton saíram na frente com Ronnie Whelan. O empate soviético só viria na metade da segunda etapa, obra de Protasov — recém-contratado pelo Dínamo.


Depois do inesperado 1 a 1, o Exército Vermelho precisaria vencer a Inglaterra, para se classificar. Os Three Lions jogavam pela defesa da sua honra, acumulando duas derrotas. Robson armou um time mais defensivo em relação aos anteriores, colocando o volante Steve McMahon na vaga do atacante Peter Beardsley. Não adiantou nada. Passados três minutos de jogo, Sergei Aleinikov já punha os homens do leste em vantagem. O zagueiro Tony Adams empataria, mas Mikhailichenko e Viktor Pasulko confirmaram a vitória e a liderança da URSS.

As semifinais posicionaram a Itália no caminho dos homens de Lobanovskyi. O time treinado por Azeglio Vicini era fortíssimo na defesa, com Giuseppe Bergomi, Riccardo Ferri, Franco Baresi e Paolo Maldini à frente do goleiro Walter Zenga; o meio-campo tinha consistência, com Carlo Ancelotti e Francesco De Napoli, e talento, com Roberto Donadoni e Giuseppe Giannini; e o ataque apostava no entrosamento de Roberto Mancini e Gianluca Vialli, companheiros na Sampdoria. Uma squadra fortíssima.

Mais uma vez, Dasaev fechou o gol e o entrosamento do Dínamo se fez valer. Gennadiy Litovchenko seria chamado a concluir, com classe, um troca de passes rápida e precisa, pelo miolo da defesa italiana. Era o 1 a 0. Quatro minutos depois, Protasov concluiria um contragolpe puxado por Mikhailichenko, aproveitando o choque da Azzurra após o primeiro gol e dando números finais à partida: 2 a 0.


Depois de encontrar a sintonia fina durante a competição, a Holanda voltava ao caminho soviético.

Contra um golaço, não havia o que fazer


No dia 25 de junho, no Olympiastadion, em Munique, holandeses e soviéticos se reencontraram. Os comandados de Michels chegavam com o moral no teto. Eliminar a Alemanha Ocidental tinha o sabor de um título para a Oranje, sobretudo com a rival na condição de anfitriã. Além disso, a Holanda contava com um trunfo. Kuznetsov vinha sendo o principal defensor de Lobanovskyi e estava suspenso. A defesa soviética foi reconfigurada com a entrada do volante Aleinikov. E foi por ali que começou o fim.

O escanteio cobrado por Erwin Koeman não daria em nada, mas o mesmo não seria dito da segunda bola. De novo nos pés do meia, ela foi novamente alçada na área soviética e a linha de impedimento falhou. Van Basten desviou e Gullit estava posicionado para fuzilar, de cabeça, Dasaev. Mais tarde, na etapa final, aconteceria um daqueles lances que não se lamenta, apenas se observa hipnoticamente. Arnold Mühren lançou uma bola diagonal para Van Basten e o resto, como dizem, foi história.

Completamente sem ângulo, o centroavante acertou um sem-pulo magistral, longe do alcance de Dasaev. Talento puro. Ninguém esperava uma finalização, a jogada parecia perdida. Mais tarde, o goleiro soviético diria que foi um tento de sorte, mas que somente um craque como Van Basten poderia fazê-lo. Era verdade. 

A URSS não desistiria do jogo e teria um pênalti a seu favor. No duelo entre Belanov e Hans van Breukelen, prevaleceria o goleiro, que parou um chute fortíssimo. Não era dia para festas na Praça Vermelha.


O time vice-campeão europeu tinha tudo, um sistema forte, entrosamento, qualidade técnica, um goleiro soberbo e um técnico visionário. Contava com um eleito ao Ballon d’Or. Mas não tinha ninguém como Marco van Basten.

Foi a melhor chance para a União Soviética ganhar um troféu. Naquela época, éramos uma boa equipe, a maioria dos nossos jogadores era de Kiev e dominávamos a Europa. Sabíamos que iríamos bem [...] Lobanovsky foi tudo para o Dínamo de Kiev e o futebol russo [...] Trouxe uma formação científica para o futebol no início dos anos 1970 e, quando cheguei ao Dínamo, em 1976, tínhamos médicos e cientistas, o tipo de coisa que nem mesmo agora muitos países têm. Ele era muito tático também. Jogamos o tipo de jogo de pressão como o Barcelona faz agora. Era uma nova era para o futebol. Como pessoa, ele era muito exigente e um exemplo para nós porque era um profissional de ponta”, falou Baltacha, à BBC.

Aquela equipe, dois anos mais velha, ainda serviria de base para a Copa do Mundo de 1990, mas ali já se ouvira o canto do cisne. Derrotada por Romênia e Argentina, a URSS foi logo eliminada, apesar de ter goleado Camarões na rodada final. Lobanovskyi se despedia do selecionado — anos mais tarde, ajudaria a revelar Andriy Shevchenko e comandaria uma Ucrânia independente.


Na Euro 1992, as nações soviéticas, excetuadas Lituânia, Letônia e Estônia, seriam representadas pela Seleção de Futebol da Comunidade dos Estados Independentes. Com um clima inevitavelmente conflituoso, o selecionado cairia na fase de grupos, ficando em último lugar.

Desde 26 de dezembro de 1991, a URSS já era parte do passado e a Rússia logo se apropriaria de sua história. “Agora que o presidente [Gorbachev] se demitiu e que a bandeira vermelha foi tirada do Kremlin, está na hora de nos retirarmos”, diria Anuarbek Alimzhanov, até então presidente do Soviete das Nacionalidades, a Câmara Alta do Parlamento Soviético, como reproduziu o Jornal do Brasil. Era quase um epitáfio. Independentemente das implicações sócio-econômicas, políticas e culturais do fim da supernação, o futebol perdia uma potência de um nível que suas sucessoras apenas aspiram alcançar.

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