Motim, desordem e artilharia: a Rússia na Copa de 1994

Era o ocaso do ano de 1991, época de Natal, quando a União Soviética foi dissolvida. O clima era tenso, mas os sinais da ruína do regime comunista estavam por todos os lados. A primeira loja da rede McDonald’s, um dos símbolos mais fortes do mundo capitalista, fora inaugurada. Dois meses antes do fim, os estadunidenses do Metallica fizeram um show apoteótico, para 1,6 milhão de soviéticos. Em todos os sentidos, os anos que seguiram não seriam menos movimentados. O futebol, que via diversos atletas emigrando para clubes estrangeiros, não escaparia da realidade.

Salenko Russia Cameroon 1994
Foto: Getty Images/Arte: O Futebólogo


Primeiro veio a Comunidade dos Estados Independentes


Um mês antes do fim, a União Soviética se classificara para a Euro 1992. Não era um feito qualquer; o Exército Vermelho deixara a Itália, terceira colocada no Mundial de 1990, de fora. Os outros adversários eram menos fortes, Noruega, Hungria e Chipre. A qualificação foi impositiva. Os soviéticos tiveram o maior número de gols marcados e a menor monta de tentos concedidos. Ademais, não perderam. Foram cinco vitórias e três empates.

O grupo do Leste Europeu se sugeria candidato ao título, até por ter batido na trave quatro anos antes. No entanto, a derrocada da URSS gerava uma situação inusitada: a declaração de dissolução reconhecia a independência das repúblicas soviéticas que, entretanto, apenas se classificaram para a Euro 1992 como um grupo unificado. A solução imediata foi a formação da Comunidade dos Estados Independentes, começando em 8 de dezembro de 1991, com a assinatura do Pacto de Belaveja.

Gradativamente, a organização intergovernamental uniu Armênia, Azerbaijão, Belarus, Cazaquistão, Rússia, Quirguistão, Moldávia, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão. A iniciativa era vista como “a última chance para se evitar a anarquia social, política e econômica”, nas palavras do presidente cazaque, Nursultan Nazarbayev, como reproduziu a Folha. Rapidamente, a comunidade seria reconhecida mundo afora. Os Estados Unidos, por exemplo, o fariam em pleno Natal de 1991.


A solução política também serviria para o futebol, com a FIFA reconhecendo-a em janeiro de 1992. A Suécia, sede da Euro 1992, receberia uma delegação da Comunidade dos Estados Independentes. Algum anacronismo seria inevitável, com os uniformes do conglomerado sendo vermelhos e brancos. O responsável pelo esquadrão era Anatoliy Byshovets, de 46 anos. Nascido em Kiev, fizera carreira no Dínamo local, mas trabalhara com as categorias de base da seleção soviética, bem como no Dínamo Moscou.

Ele foi o responsável por unir um grupo que, em pouco tempo, se distribuiria. Tomando por base apenas o local de nascimento, haveria uma maioria de russos, um número representativo de ucranianos e apenas um georgiano e um belarrusso. A CIS, na sigla inglesa, seria sorteada para o Grupo 2, junto de Alemanha, Escócia e Holanda.

A campanha seria fraca e marcada por surpresa. Depois de empatar com alemães e holandeses, os antigos soviéticos foram batidos pelos escoceses, para surpresa geral. “Entramos como se fosse a final. Eles ficaram chocados com a forma como jogamos. Mas era a única maneira de as pessoas dizerem que merecíamos estar lá, que não tínhamos sorte. Então aquele último jogo foi vital para justificar nossa presença lá”, diria o treinador britânico Andy Roxburgh, ao Guardian.


Escolhendo lealdades nacionais


Depois de a Comunidade dos Estados Independentes disputar a Euro 1992, os atletas tiveram que definir sua lealdade esportiva. Para os russos, foi uma decisão fácil, sobretudo porque a herança dos resultados históricos da URSS lhes caberia. Esse cenário, entretanto, geraria alguma controvérsia. Um caso evidente é o do defensor Akhrik Tsveiba. Nascido em Gudauta, território georgiano, faria um jogo pela Ucrânia antes de passar a representar a Rússia. Oleg Salenko também vestiria a camisa ucraína uma vez, antes de optar pela russa.

A alternativa não era apenas ditada pelo coração. Pragmaticamente, fazia sentido escolher a Rússia. “Meu irmão tem apenas 20 anos e tem tempo para esperar até que a Ucrânia se torne realmente forte no futebol mundial; para mim, seria imperdoável perder a Copa do Mundo de 1994 [...] Recebi convites de dirigentes da seleção ucraniana, mas senti que a Rússia chegaria aos EUA e a escolhi como minha seleção nacional”, relatou o zagueiro Viktor Onopko, nascido em Voroshilovgrad, que se tornaria Luhansk, ao Ukrainian Weekly, jornal fundado por ucranianos da diáspora para a América do Norte.

Viktor Onopko Russia 1993 1994
Card: Reprodução

Caminho semelhante, com idêntica justificativa, seguiriam Andrei Kanchelskis, à época jogador do Manchester United, e Sergei Yuran, do Benfica. Contudo, outros atletas escolheriam diferente. Alexei Mikhailichenko e Oleg Kuznetsov decidiriam pela Ucrânia, Sergei Aleinikov por Belarus e Kakhaber Tskhadadze pela Geórgia.

Após o fim da URSS e a mudança maciça dos melhores jogadores soviéticos para a Europa, a Rússia acabou concentrando o melhor do futebol da região, exceção feita ao desempenho do Dínamo de Kiev. Tornar-se-ia quase impossível a manutenção de bons jogadores em outros mercados. O georgiano Shota Arveladze, por exemplo, trocaria o outrora gigante Dinamo Tbilisi pelos turcos do Trabzonspor com apenas 20 anos. Kakha Kaladze, que ficaria marcado pela passagem no Milan, viveria algo semelhante, mas seguindo para o Dinamo kievano.

Em 1992-93, o CSKA Moscou ficaria entre os oito melhores times da Liga dos Campeões, eliminando o Barcelona, que era o último campeão. No ano seguinte, o Spartak viveria algo semelhante. O futebol russo, que ainda conseguia manter jogadores como Valery Karpin por um pouco mais de tempo, era, efetivamente, o melhor.


Conflitos e rupturas


Outra questão significativa que aconteceu após a Euro 1992 foi o destino de Byshovets. Quando a Rússia assumiu seu lugar no cenário do futebol mundial, o treinador não foi o escolhido para liderar a equipe. Coube a Pavel Sadyrin o comando. Nascido em Molotov, mais tarde Perm, representava um estilo de liderança muito conhecido, mas não necessariamente apreciado.

“Ele é conhecido como um técnico bom e duro. Provavelmente, não é a melhor personalidade para treinar um time de estrelas. Lida-se com egos bastante inflados, algo a que ele não está acostumado. Ele é da velha escola de treinadores soviéticos, que eram mais ditatoriais”, relatou Robert Edelman, professor de história russa da University of California, como registrou o Los Angeles Times.

Não se podia discutir, contudo, que seus métodos funcionavam. Em 1984 e 91, Sadyrin levou seus times à dobradinha soviética, de Copa e Campeonato — primeiro com o Zenit e, mais tarde, o CSKA. Nada disso evitaria a eclosão de gravíssimos problemas internos, envolvendo inclusive importantes lideranças políticas.

Pavel Sadyrin 1994 World Cup
Foto: Vladimir Rodionov/Sputnik/ Arte: O Futebólogo

No dia 17 de novembro de 1993, em Atenas, Grécia e Rússia fizeram um jogo decisivo. O vencedor terminaria com a liderança do Grupo 5 das eliminatórias. Um triunfo não faria diferença para nenhuma das partes. Gregos e russos não podiam ser alcançados pela Islândia, terceira colocada, e se classificavam os dois primeiros. Porém, um jogo pobre do quadro treinado por Sadyrin levaria a uma derrota marginal, 1 a 0 com gol do grego Nikos Machlas, uma expulsão de Onopko, e a uma revolta interna.

Após o jogo, o presidente da Federação Russa, Vyacheslav Koloskov, teria ido aos vestiários dizer o que pensava daquela derrota, acirrando os ânimos. O dirigente também teria informado, impositivamente, que chegara a um acordo com a Reebok, para o fornecimento de chuteiras. Sempre que estivessem ao serviço do país, os atletas não poderiam honrar seus contratos individuais com outras empresas, forçados a calçar a marca escolhida pelos chefes. Sadyrin estaria a par de tudo.

No rescaldo da partida, estava claro que o treinador estava ao lado dos dirigentes, não dos jogadores. 

14 deles assinaram uma carta para Shamil Tarpischev, assessor especial de Boris Yeltsin para esportes, requerendo a demissão do treinador e a recontratação de Byshovets. Além disso, reclamaram de más condições de treinamento e de receberem bonificações muito baixas. Os insurgentes eram Igor Shalimov, Igor Dobrovolsky, Sergei Kiriakov, Andrei Kanchelskis, Yuri Nikiforov, Valeri Karpin, Andrei Ivanov, Sergei Yuran, Igor Kolivanov, Viktor Onopko, Dmitri Khlestov, Oleg Salenko, Vassili Kulkov e Alex Mostovoi.


Um único ponto positivo: Oleg Salenko


Efetivamente, pouco resultado foi alcançado a partir da carta. Sadyrin não foi demitido e Byshovets tampouco foi recontratado. Após um amistoso contra os Estados Unidos, em janeiro de 1994, o treinador mantido demonstraria sua disponibilidade para ceder às vontades dos atletas: “Apenas os jogadores que querem jogar jogarão neste time. No futebol, sempre há substitutos”, reportou o Los Angeles Times. Na altura, todos os 14 estavam banidos. Aos poucos, alguns foram voltando, como Salenko e Yuran.

Chegada a hora da convocação final para o Mundial, metade dos signatários da carta ficou fora. Dobrovolsky, Ivanov, Kanchelskis, Kulkov, Kiriakov, Kolyvanov e Shalimov, que supostamente assumira a condição de líder do motim. “Até onde eu sei, eles não existem”, bradou Sadyrin. O clima, certamente, não era dos melhores quando da viagem definitiva ao território estadunidense. Naquela altura, Byshovets assumira o comando da Coreia do Sul e sequer seguia disponível para um retorno tardio.

O nome de Oleg Romantsev, treinador vitorioso do Spartak Moscou, foi ventilado às vésperas do Mundial, mas seria Sadyrin o comandante dos russos em sua primeira Copa do Mundo após a ruína da URSS. A paz nunca foi alcançada.


A equipe estreou no certame perdendo para o Brasil, 2 a 0, com gols de Romário e Raí. O ataque, naquela partida, ficou a cargo de Yuran, substituído posteriormente por Salenko. No segundo jogo, derrota para a Suécia, o titular ficou de fora e faltou a um treino. “Sim, ele está indo embora”, confirmou Sadyrin, como noticiado pelo Independent. A única coisa a ser celebrada pelos russos nos EUA seria a goleada no jogo de despedida, 6 a 1, contra Camarões. Salenko marcou cinco vezes e foi um dos artilheiros da competição, ao lado de Hristo Stoichkov.

Após a participação esquecível, Sadyrin pediu demissão, elogiado por seus superiores pela hombridade. Os atritos vividos evidenciaram as dificuldades que a transição vivida pela Rússia impunha. Os atletas conheceram um mundo mais aberto e deixaram de aceitar passivamente se submeter aos velhos padrões soviéticos. E não havia mais como voltar atrás. As diferenças estavam por todo lado, no dinheiro, estilo de vida, nos treinamentos mais avançados que encontraram no estrangeiro. 

Tragédia consumada, Romantsev acertou um contrato para o ciclo seguinte.

O futebol era apenas o símbolo de algo muito maior. Como diria Svetlana Alexievich, n’O Fim do Homem Soviético, “todos estavam ébrios com a liberdade, mas não prontos para ela. Onde é que ela estava, a liberdade? Só na cozinha, onde continuavam xingando o governo, como de costume. Xingavam Yeltsin e Gorbachev [...] A Rússia mudou e odiou a si mesma por ter mudado”.

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