Na década de 1980, o Racing Paris tentou comprar o sucesso
Passados mais de 160 anos desde a
instituição das regras do futebol, Paris não é uma capital desse esporte.
Mesmo amando-o profundamente, tendo algumas das massas associativas mais
inflamadas do planeta; ainda que sedie o maior vencedor da Ligue 1, o PSG, e
tenha tido outros campeões ao longo da história, a Cidade Luz não se tornou
um dos polos futebolísticos mais importantes. O projeto do PSG sob a direção
de Nasser Al-Khelaïfi tem tentado mudar essa realidade, mas não é a primeira
vez que algo desse tipo acontece. Nos anos 1980, o Racing Paris tentou a sua
sorte.
Foto: Michel Barrault/So Foot/Arte: O Futebólogo |
Jean-Luc Lagardère expande seus negócios
Um dos maiores empresários franceses no início dos anos 1980, Jean-Luc
Lagardère comandava uma carteira de negócios extensa, notadamente no setor
aeronáutico, mas que se expandia até mesmo ao mundo dos esportes. Duas décadas
antes, a Matra, conglomerado de empresas cofundado por Lagardère, adquirira uma
fábrica de carros e, em 1968, entrou para o mundo da Fórmula 1. Ele também
tinha mãos no hipismo e, em pouco tempo, entraria para o mercado editorial,
adquirindo a editora Hachette, responsável por publicações como Elle.
Tal homem se dispunha a buscar a glória eterna no mais popular dos esportes se
aproveitando de uma lacuna: o PSG não tinha sequer 15 anos de existência e
Paris vivia à margem dos sucessos futebolísticos de cidades como Bordeaux,
Marselha, Nantes, Nice e Saint-Étienne. Em 1982, a ideia original era fundir
Paris FC, então na segunda divisão, e Racing Paris, este um clube tradicional,
vencedor da Ligue 1 nos anos 1930, com dois vice-campeonatos no início da
década de 1960, mas que vagava por divisões inferiores desde 1964.
Em um primeiro momento, as lideranças do Racing foram contrárias ao movimento;
receavam que as finanças do Paris FC estivessem em mau estado e a possível
praga se alastrasse para dentro dos Ciel et Blancs. Lagardère não
estava disposto a conviver com um não e, simplesmente, adquiriu o primeiro clube,
mudando seu nome imediatamente para Racing Paris 1 e adotando as conhecidas
cores azul celeste e branco. Um ano depois, a fusão foi facilitada, com a
garantia de que o clube resultante seguiria no segundo escalão francês.
Em 1982-83, faltaram seis pontos para o acesso à Ligue 1. Impaciente, Lagardère foi à Argélia buscar um dos artífices de uma seleção que chamou a atenção de todos na Copa do Mundo de 1982. Rabah Madjer era, ao lado de Lakhdar Belloumi, a grande estrela da equipe que foi condenada à eliminação por um infame empate entre Alemanha e Áustria. Aos 25 anos, Madjer representava as cores do NA Hussein Dey e estava pronto para dar o salto de qualidade.
Foto: Panini |
“Sua contratação foi como a de Neymar pelo Paris Saint-Germain”, contou o
treinador Alain de Martigny, ao
jornalista do NY Times, Rory Smith. Em 1983-84, o Racing terminou a Ligue 2 em segundo lugar no Grupo B. Foi
aos playoffs, deixou Lyon e Nice pelo caminho e bateu o Saint-Etienne na
decisão. Madjer fez 20 gols.
Uma caminhada errática
No retorno à elite, Lagardère não mostrou a mesma disposição de antes para
reforçar o time. Inclusive, no curso da temporada 1984-85, cedeu Madjer ao
Tours, que batalhava para evitar o descenso justamente contra o Racing. Nada daquilo
fazia muito sentido, o rebaixamento imediato foi conclusão esperada e lógica.
Ninguém passou impune por 21 derrotas, em 38 partidas. O treinador Alain de
Martigny, decerto, não passou. O zagueiro Victor Zvunka, de longa trajetória
pelo Olympique de Marseille acumulou funções, mas não impediu o inevitável.
Chegara a hora de fazer as coisas bem feitas. O Racing contratou René Hauss
para exercer as funções de diretor esportivo. Ele era um homem do futebol,
ídolo do Strasbourg como jogador e do Standard Liège como treinador, conhecia
mais do que um par de coisas do riscado. Sob sua tutela, o iugoslavo Silvester
Takač, velho conhecido dos tempos na Bélgica, assumiu o comando da equipe. Deu
certo. Apoiado nos gols do zairense Eugène Kabongo, artilheiro da Ligue 2 com
30 gols, o time voltou a subir, agora com o título.
Kabongo partiu para o Anderlecht no ano seguinte, mas Lagardère abriu a
carteira: não veria seu nome ligado a mais um vexame. Em um momento em que só
se podia contar com dois estrangeiros, escolheu dois uruguaios e um alemão
para representar a mudança de patamar da equipe, todos mundialistas no México.
Do Colônia, chegou o insinuante Pierre Littbarski; do River Plate, o príncipe
Enzo Francescoli; do Internacional, o motor Ruben Paz. Zvunka retornava à
casamata, agora sem dividir funções.
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo |
Além dos estrangeiros, foram contratados jogadores importantes do cenário
francês, como Luis Fernandez, outrora membro do famigerado
Carré Magique, o meio-campo da seleção francesa, com ele, Jean Tigana,
Alain Giresse e Michel Platini. A contratação era uma carta de intenções.
Fernandez não era somente uma referência nacional, mas também o capitão do
PSG. Outros contratados foram o polivalente Thierry
Tusseau, outro mundialista, e o goleiro Pascal Olmeta.
O dinheiro para tais contratações vinha da Matra, que exibia, bem grande, seu
nome na camisa da equipe. No entanto, Lagardère foi obrigado a entender que
milhões podem formar um grande elenco, mas não necessariamente isso se reflete
dentro das quatro linhas, em termos de bom futebol, gols e conquistas.
“Tínhamos 13 jogadores de seleção, algo assim. Era uma ideia interessante, a
chance de construir alguma coisa do nada”, contou Littbarski, a Smith.
Naquele ano, contudo, as coisas não correram nada bem. O time até venceu o PSG
uma vez, mas perdeu a segunda com gol contra de Fernandez. Na tabela de
classificação, ocupou a perigosa 13ª colocação, cinco pontos acima da zona de
playoffs de rebaixamento. O Racing mais perdeu do que venceu (14V, 8E e 18D),
teve saldo de gols negativo. A bem da verdade, o ano como um todo foi negativo
— exceto pela forma de Francescoli, autor de 14 gols.
Lagardère não desiste
Em 1987, Lagardère não diminuiu sua ambição. Não apenas seguiu investindo no
clube como mudou seu nome para Matra Racing, tornando ainda mais umbilical a
relação entre seus negócios. Zvunka foi substituído. O escolhido para liderar
a equipe foi o português Artur Jorge, recém-campeão europeu com o Porto. “Foi
o melhor treinador que tive”, contou Francescoli à revista
El Gráfico.
O elenco passou por mudanças. Insatisfeito, Littbarski tirou dinheiro do
próprio bolso para voltar ao Colônia. “A organização não era profissional
[...] precisávamos lavar nossos uniformes sozinhos, coisas assim”. Sem mais
nem menos, o alemão pagou sua multa rescisória e voltou para casa.
Quem também não durou nada ali foi Ruben Paz. “Eu estava em Paris sem
possibilidades de jogar, cobrando um salário para treinar, em um lugar em que
três mil pessoas vão ao estádio e tanto faz se você perde ou ganha. Me sentia
um fracassado”, contou à citada El Gráfico
em 1988, já jogador de outro Racing, o de Avellaneda.
Foto: Panini |
Na contramão, o clube fechou a contratação do holandês Sonny Silooy, ex-Ajax,
do marroquino Abdelkrim Merry, ex-Saint-Étienne, e, mais importante, do
goleador Gérard Buscher, a máquina de gols do Brest, que vinha sendo convocada
para a seleção francesa na época. Lagardère ainda tentou, sem sucesso,
contratar um jovem Éric Cantona, que achou aquilo tudo excêntrico demais; não
fazia sentido para ele.
Os resultados melhoraram ligeiramente. O Matra Racing fechou a Ligue 1 de
1987-88 na sétima colocação. Agora até venceu mais do que perdeu, mas o número
de empates assustou: foram 17, um recorde naquele ano. Outra vez, o
desequilíbrio do time ficou evidente pelo saldo de -7 gols.
Em algum momento, entre as rodadas 22 e 28, o quadro azul e branco lutou pelo título,
chegando à vice-liderança alavancado por uma invencibilidade que durou da 17ª
a 24ª rodadas. Houve dias terríveis, entretanto. Por exemplo, a visita ao
Montpellier de Roger Milla. Impiedosamente, os donos da casa impuseram um 6 a
1. A viagem a Lille, em que jogava o goleiro Bernard Lama, não foi mais feliz:
5 a 0 para os Dogues.
A confiança em Artur Jorge foi mantida, era, afinal, um campeão. O elenco
ganhou mais peças, como o meia Vincent Guérin, o craque marroquino Aziz
Bouderbala e o talentoso garoto David Ginola. Pouca coisa mudou, porém.
“A atmosfera era realmente complicada. Havia muitos jogadores de nome que não eram titulares e não estavam felizes. Era difícil para o treinador e para mim como jogador jovem. O vestiário era horrendo”, rememorou Ginola, a Smith.
O Matra Racing é um fiasco
O Matra Racing só escapou do rebaixamento em 1988-89 no saldo de gols. Os Ciel
et Blancs perderam um turno inteiro de partidas. Fizeram um campeonato
horroroso; aquela empreitada era uma autêntica vergonha.
As pessoas de Paris
torciam, massivamente, para o PSG e Lagardère não tinha o know-how para fazer do
Racing um clube mais vitorioso ou representativo. “Íamos jogar contra o Saint-Étienne, um dos clubes históricos da França. Entrei no gramado para o
aquecimento e a garotada toda estava com a camisa verde do Saint-Étienne. Foi
como jogar na casa do adversário”, lembrou Ginola.
Insatisfeitos com os
investimentos infrutíferos da Matra naquele time e, mais ainda, com a
associação de sua marca ao fracasso, os acionistas da empresa demandaram que Lagardère deixasse a equipe. O que aconteceu em abril de 1989.
“Apodrecemos o mundo do futebol colocando dinheiro? Droga! Juro que nunca tivemos o maior orçamento e nem o maior salário da França”, garantiu Lagardère, à época.
Foto: racingfoot.fr/Arte: O Futebólogo |
Logo, o clube voltou a se chamar Racing Paris e a brincadeira acabou.
Francescoli puxou uma fila de saídas que incluiu o técnico Artur Jorge,
Silooy, Guérin, Fernandez, Buscher e vários outros nomes importantes.
A única surpresa da temporada 1989-90 foi o Racing Paris não ter ficado na
última colocação da Ligue 1. Foi quase. Em 19º lugar, o clube viu o derradeiro
final daquele delírio se manifestar. Provavelmente, no início da década,
Lagardère acordou de seu sonho cedo demais, não dormiu o suficiente para ver
que aquilo tudo era, na verdade, um grande pesadelo de 300 milhões de dólares.
Lagardère tentou se tornar um nome poderoso da bola, como era, por exemplo,
Bernard Tapie, no Olympique de Marseille. Entendeu a duras penas e ao custo de muito prejuízo que dinheiro
pode comprar os meios de se alcançar o sucesso, mas não o garante por si
mesmo. O time nunca mais respirou os ares da elite.
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