Euro 1996: o título que celebrou a reunificação da Alemanha

Matthias Sammer nasceu em Dresden. Filho da Alemanha Oriental, já havia marcado seu lugar no esporte quando foi apresentado a um novo mundo em 1990. Era uma realidade inimaginável. Da noite para o dia, deixou de defender uma nação que tinha dificuldades para se classificar para as Copas e passou a representar o país campeão do mundo. Seis anos mais tarde, durante a Euro 1996, foi o expoente da conquista que decretou que a Alemanha era uma só.

Germany Alemanha Deutschland Euro 1996
Foto: Reuters/Arte: O Futebólogo

Ocidente e oriente se unem


O dia 9 de novembro de 1989 preenche a memória de Matthias Sammer como nenhum outro. A efeméride marca a Queda do Muro de Berlim. Conforme o fim da URSS se precipitava, todas as nações por ela influenciadas, do lado de dentro da Cortina de Ferro, passaram por longos e profundos processos de mudança. Os anos 1990 apenas surgiam no horizonte, quando as fronteiras entre Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental se abriram.

“Só posso dizer o que sinto: graças a Deus nos tornamos um só país outra vez”, comentou o craque, em entrevista à SBS. “Não é que não tenhamos mais problemas, mas podemos nos orgulhar. Quando vejo como minha cidade natal, Dresden, foi reconstruída, fica claro o quão inacreditável é o que esse país e esse povo alcançaram”.

No dia em que a fissura nos limites entre as duas nações se estabeleceu, Sammer estava reunido com a seleção da Alemanha Oriental, às vésperas de uma partida válida pelas Eliminatórias para o Mundial de 1990, contra a Áustria. Desconfiados, os jogadores do selecionado não ousaram comemorar a perspectiva de, enfim, poderem se locomover livremente.

Matthias Sammer DDR
Foto: Fussball Museum/Arte: O Futebólogo

Dias depois, o treinador do Stuttgart viajou a Dresden para se encontrar com Sammer. Arie Haan levou as boas novas: o jogador podia se mudar para uma equipe da Bundesliga. “Eu já estava pensando… e se tiver uma escuta debaixo dessa mesa?”, recordou Matthias. “Eu precisava informar a reunião à Stasi [polícia secreta da Alemanha Oriental]”.

Desabalados, os processos de reunificação da Alemanha prosseguiram. No dia 27 de março de 1990, o NY Times noticiou um de vários momentos simbólicos do período. “Tomei a decisão de vir aqui em um segundo”, comentou Franz Beckenbauer. De um lado, estava um time misto de estrelas veteranas das duas Alemanhas; do outro, uma equipe de craques internacionais.

O jogo aconteceu no Dynamo Stadium, em Dresden. Os germânicos foram derrotados por 2 a 1, mas o gol de Hans-Jürgen Kreische, ídolo do quadro local, após cruzamento de Uli Hoeness, ícone do Bayern, marcou. “Esse jogo foi um prazer para mim”, pontuou Jürgen Croy, goleiro da Alemanha Oriental no Mundial de 1974. Três meses depois, Sammer fechou contrato com o Stuttgart.


O processo não foi inteiramente pacífico. A reunificação foi anunciada em 3 de outubro e, para 14 de novembro, foi preparada uma partida comemorativa entre as duas seleções. Aconteceria em Leipzig. Razões de segurança impediram o embate de acontecer, mas naquela altura muita gente já não diferenciava as nações. Para dar um exemplo, quando a Alemanha Ocidental conquistou a Copa do Mundo de 1990, houve celebrações dos dois lados.

Berti Vogts começa a trabalhar


O primeiro encarregado de promover unidade no seio da seleção alemã foi Berti Vogts. Homem de um time só — o Borussia Mönchengladbach —, fora campeão do mundo em 1974. Desde 79, comandava as equipes de base da Alemanha Ocidental e era um dos auxiliares da principal. Quando Beckenbauer confirmou que estava de mudança para Marselha, onde comandaria o Olympique, Vogts foi uma escolha natural.

Berti Vogts 1974
Foto: Fussball Museum/Arte: O Futebólogo

Beckenbauer se foi sem evitar deixar um fardo nas mãos de seu sucessor. “Somos campeões do mundo. Agora também temos os jogadores do oriente. Lamento pelo resto do mundo, mas acredito que seremos imbatíveis nos próximos anos”.

A missão era especialmente difícil porque os alemães vinham de um título mundial, além de terem sido derrotados nas finais das Copas do Mundo de 1982 e 86. O momento pedia uma pequena renovação, mas não era fácil tirar o espaço de quem já estava lá e nem mesmo o de quem vinha na fila, esperando um chamado, em favor de atletas que, até pouco tempo atrás, eram adversários.

Vogts nutria relações longevas com vários dos atletas que já representavam a Mannschaft. Entre os campeões de 1990, 18 de 22 haviam sido liderados pelo treinador em escalões inferiores, seja no sub-16, 18 ou 21. Ele não podia se dar ao luxo de destruir o núcleo que estava formado. Os melhores jogadores provenientes da Alemanha Oriental tiveram que se provar. Na Euro 1992, apenas três foram integrados à equipe que viajou à Suécia: Sammer, Thomas Doll e Andreas Thom.

Berti Vogts 1996
Foto: imago/Arte: O Futebólogo

Somente Sammer se afirmou, sendo logo acompanhado por Ulf Kirsten, seu velho conhecido dos tempos de Dynamo Dresden, e que se transferira para o Bayer Leverkusen. A pouca utilização de atletas da Alemanha Oriental não deixava de sinalizar certo desprestígio, que já fora observado quando os clubes da RDA passaram a integrar a Bundesliga: só dois foram admitidos na elite germânica, Dynamo Dresden e Hansa Rostock.

Aquela Euro deixou sentimentos mistos. Chegar à decisão era, evidentemente, bom resultado. Contudo, os alemães foram derrotados pela Dinamarca, uma enorme zebra que sequer teria se classificado se não fosse pela exclusão da Iugoslávia, que estava em guerra civil. Para Sammer, no entanto, a competição foi importante. Ele substituiu Lothar Matthäus.


O verão de Sammer


Quatro anos mais tarde, Vogts viajou à Inglaterra para a disputa da Euro 1996. No que foi um torneio histórico, marcado pelo otimismo da imprensa britânica, que não parava de exibir o slogan da competição, Football Comes Home, o treinador chegou sob pressão.

A Alemanha não defendeu o título mundial na Copa de 1994. Depois de superar um grupo com Bolívia, Coreia do Sul e Espanha, e de eliminar a Bélgica nas oitavas de finais, caiu diante de outra azarona.


A Bulgária tinha Hristo Stoichkov e Krasimir Balakov, mas a Alemanha era tricampeã do mundo e não poderia ser subjugada daquela forma. O fato acrescido da ideia de que o quadro germânico deveria ter evoluído com a adição do talento oriental pesava. Vogts estava em maus lençóis. A imagem de implacável, construída durante os tempos de atleta, já não condizia com a de treinador — um homem estudioso, quieto e que tinha ganas de conhecer o mundo.

Dois anos depois, Vogts precisou tomar decisões importantes. Matthäus e Jürgen Klinsmann viviam em atrito no Bayern, por conta da braçadeira de capitão que foi tomada do primeiro e entregue ao segundo, que voltava ao país depois de passagens por Internazionale, Monaco e Tottenham. O treinador tomou o lado de Klinsmann, agora capitão também na seleção. Outros preteridos foram o goleiro Bodo Illgner e o meia Stefan Effenberg, percebidos como atletas instáveis.

Matthias Sammer Euro 1996
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Com relação aos egressos da Alemanha Oriental, Sammer seguiu com protagonismo. Doll e Thom não foram chamados; Kirsten também não. Dois outros nomes, no entanto, apareceram entre os convocados definitivos: o defensor René Schneider, à época no Hansa Rostock, e o volante Steffen Freund, do Borussia Dortmund.

A Alemanha ficou no Grupo C, amplamente reconhecido como o mais difícil da competição. Lá estavam Itália, a última vice-campeã do mundo, República Tcheca, que trazia uma renovada geração de craques como Pavel Nedved, Karel Poborsky e Vladimir Smicer, e Rússia, principal herdeira da sempre competitiva URSS.

Continuando uma tradição consagrada por Beckenbauer e reiterada por jogadores como Uli Stielike e Matthäus, a Alemanha vinha com três defensores, sendo um deles o líbero — um armador interior. O herdeiro da vez foi Sammer. Ele partia de uma posição central, entre os zagueiros Thomas Helmer e Markus Babbel, e se metia entre os meio-campistas: Dieter Eilts e Thomas Häßler. Era, ao lado do meia Andreas Möller, o mais talentoso de uma equipe que começou sem Klinsmann, sem as melhores condições físicas.

Na primeira fase, a Mannschaft cumpriu os protocolos. Venceu os tchecos (2x0), superou confortavelmente os russos (3x0) e passou apertado diante da Itália, com um empate (0x0). A nota negativa foi a perda do zagueiro Jürgen Kohler, que se lesionou no início da estreia alemã e perdeu o restante da competição.


Final antecipada…


Na primeira fase, Sammer começou a se revelar. Além de orientar as ações germânicas, mostrou diante da Rússia como seus arroubos ofensivos se pagavam; evidenciou quão simplório era dizer que Vogts escalava a Alemanha com três zagueiros. Matthias recebeu bola invertida da esquerda para a direita e apareceu como elemento surpresa. Precisou finalizar duas vezes para superar o goleiro Dmitri Kharine, mas abriu a contagem diante dos eslavos orientais.

Nas quartas de finais, o líbero foi novamente decisivo. Na primeira aparição internacional da Croácia independente, a Alemanha vinha tendo problemas para conter o bom time axadrezado, quando Sammer invadiu a área rival e sofreu um pênalti questionável, atribuído a Nikola Jerkan. Klinsmann converteu. Driblando o goleiro Andreas Kopke, Davor Suker chegou a empatar a disputa, mas ele, Sammer, garantiu o avanço alemão, aparecendo na área croata como autêntico 9.

Sammer Croatia 1996
Foto: dpa/Irei/Arte: O Futebólogo

O problema foi que a Alemanha perdeu Klinsmann, lesionado. Segundo o jornalista Juca Kfouri, o que os alemães não perderam foi “o velho jeito de jogar para vencer, como, novamente, mostrou contra a Croácia, muito mais vistosa e muito menos eficaz”.

O avanço às semifinais confirmou as expectativas. A Alemanha estava entre as favoritas. Ainda assim, nada podia ter preparado os envolvidos para o que veio a seguir. Reavivando uma rivalidade histórica, que no futebol remonta à final da Copa do Mundo de 1966, no mesmo Wembley, Sammer e companhia enfrentaram a anfitriã Inglaterra.


A partida foi, amplamente, reconhecida como uma final antecipada. A Folha de São Paulo foi um dos jornais internacionais a proferir tal veredito.

Sem Klinsmann, Vogts reforçou o meio-campo, promovendo a entrada de Freund e adiantando o meia Mehmet Scholl. No ataque, o trabalhador Stefan Kuntz foi a referência. Com três minutos de jogo, Alan Shearer colocou os ingleses em vantagem. Wembley entrou em ebulição. O futebol estava voltando para casa mesmo. No entanto, Kuntz empatou menos de 15 minutos depois.

A tensão que se estendeu até as penalidades máximas contrastou com a qualidade dos batedores. “Batemos com perfeição. David Seaman não teve chance de defender um pênalti sequer”, lembrou Möller à BBC. Parecia que a disputa continuaria pela eternidade. No entanto, Gareth Southgate não superou Kopke. Com a vantagem de 6 a 5, a Alemanha foi à final.

“Foi uma pena que um jogo como esse tivesse que ter um perdedor, mas as semifinais sempre têm. Foi uma pena, também, que alguém tivesse que carregar o peso de perder um pênalti, mas em situação de pênaltis, alguém sempre tem. Naturalmente, estou feliz que a Alemanha prosseguiu, mas de alguma forma os dois times foram vencedores hoje. Assim como o futebol”, comentou Beckenbauer, ao Guardian.


… e Gol de ouro!


Depois do tira-teima com a Inglaterra veio o contra a República Tcheca, herdeira da Tchecoslováquia de Antonín Panenka, que venceu os alemães justamente nos pênaltis na decisão da Euro 1976. No reencontro com a adversária da estreia, a situação era diferente da inicial. O mundo olhava para os tchecos com outros olhos, comprazidos com o excelente futebol praticado pelo time orientado por Dušan Uhrin.

Vogts precisou quebrar a cabeça para repor as ausências de Stefan Reuter e Möller, suspensos, além de Kohler, Mario Basler, Freund e Bobic, lesionados. Felizmente para ele, Klinsmann decidiu jogar mesmo sem estar totalmente recuperado. Se havia dúvidas de que o treinador era um dos principais responsáveis pelo sucesso daquela equipe, elas acabaram quando o treinador se virou para escalar o time.

O alemão mandou a campo: Kopke; Babbel, Sammer, Helmer; Strunz, Eilts, Scholl, Häßler, Ziege; Klinsmann e Kuntz. Já nos 45 minutos iniciais, Eilts se tornou nova baixa, substituído por Marco Bode e forçando a improvisação de Ziege como meio-campista. Em mais um jogo apertado, Poborsky foi derrubado por Sammer na área germânica nos primeiros minutos da etapa final. Patrik Berger venceu Kopke e colocou os tchecos em vantagem. Diante da iminência da derrota, Vogts trocou Scholl pelo grandalhão Oliver Bierhoff e colheu frutos. Ziege bateu falta na cabeça do centroavante, que empatou.

Klinsmann Bierhoff Euro 1996
Foto: Sky Sports/Arte: O Futebólogo

Sem ver as redes balançarem outra vez, o relógio alcançou os 90 minutos. A prorrogação se encaminhou. Na época, valia a regra do gol de ouro. Quem porventura marcasse vencia. Outra vez, as escolhas de Vogts se pagaram. Depois de um lançamento longo, Bierhoff fez o pivô para Klinsmann, que devolveu a gentileza com inteligência. O arremate do centroavante desviou na defesa e traiu o goleiro Petr Kouba. “Foi pura felicidade”, lembrou o artilheiro. A Alemanha recuperava a coroa continental, depois de 16 anos.

Houve polêmica, já que o árbitro auxiliar, o italiano Donato Nicoletti, sinalizou impedimento. Porém, abaixou a bandeira e confessou sua dúvida. Stefan Kuntz estaria fora de jogo, mas nada foi feito. “O árbitro o ignorou. É difícil dizer se o resultado é justo”, disse Uhrin, como registrou o NY Times.

Na hora mais decisiva, Sammer não fez um jogo tão bom. Mais exigido defensivamente, por conta dos vários desfalques alemães e em razão das mudanças ofensivas de Vogts, não apareceu tanto no ataque e foi o responsável pelo pênalti tcheco — que teria sido fora da área. No entanto, nada disso apagou o brilho de seu desempenho durante toda a competição. Inquestionavelmente, foi eleito o melhor jogador da competição. No final do ano, recebeu o Ballon d’Or.

Klinsmann Euro 1996
Foto: imago/Arte: O Futebólogo

“Sabíamos que, a partir desse espírito de camaradagem, poderíamos competir com os outros times. Lutamos durante todo o torneio e jogamos realmente um ótimo futebol. Mostramos muita vontade”, recordou Klinsmann, ao site oficial da Bundesliga.

Vogts sustentou a pressão que pairava sobre seus ombros. Confiou em Sammer desde o início, decidiu deixar atletas importantes fora, geriu bem algumas contingências e foi premiado por isso.

“Tínhamos bom comando de nosso sistema 3-5-2 e éramos imprevisíveis. Tínhamos jogadores de excelente técnica, mas nosso super trunfo para terminar o torneio como campeões foi a solidariedade e a força do coletivo. Houve equipes melhores em termos de jogo e táticas, mas ninguém podia nos vencer”, comentou Sammer, ao site da DFB.

O fracasso no Mundial de 1998 foi a última imagem da história de Vogts com a Alemanha. Mas quando os livros são revisitados, a Euro 1996 sempre volta à tona. Não teria como ser diferente: na Inglaterra, os alemães convenceram. Mais que isso, deixaram claro que, no futebol, ocidente e oriente já eram um só.

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