Na Recopa 1986-87, o Lokomotive Leipzig só parou no Ajax

No dia 11 de junho de 2006, Sérvia e Montenegro e Holanda se enfrentaram. Era a Copa do Mundo e a partida acontecia em Leipzig, a única sede egressa da Alemanha Oriental. O momento celebrava a tradição da cidade, que, além disso, abrigara o sorteio dos grupos do Mundial. Nos distantes idos de 1900, a Federação Alemã de Futebol fora fundada também em Leipzig e o primeiro campeão nacional, em 1903, viria dali. Outro momento esportivamente determinante para a urbe saxã seria vivido em 1986-87, protagonizado pelo Lokomotive.

Lok Leipzig 1987
Foto: Reprodução Lokomotive Leipzig/Arte: O Futebólogo


O primeiro campeão alemão


O futebol de Leipzig ganha forma na última década do século XIX. Dada a fundação a partir de um clube de ginástica, mais antigo, as datas da real origem do VfB Leipzig conflitam. Seja em 1893, ou no costumeiramente mais aceito 1896, a equipe veria o alvorecer do século seguinte. Seria um dos 86 times que, em 28 de janeiro de 1900, filiaram-se à Federação Alemã de Futebol (DFB).

Em 1903, com a organização subdividida em federações locais, os campeões regionais se classificavam para uma competição final, que definiria o primeiro campeão nacional. Associações de localidades próximas da Alemanha também eram aceitas, como a de Praga. No fim das contas, apenas seis clubes se apresentaram para o certame original, que entregava ao campeão a emblemática taça Viktoria.

Do sul, vinha o Karlsruher; da região de Hamburgo, o Altona; de Brandeburgo, o Britannia Berlin; de Magdeburgo, o Viktoria 96; de Praga, o DFC Prag; e, representando a porção central germânica, o VfB Leipzig. A partir de um tradicional sistema de mata-matas, os dois últimos alcançaram a decisão, vencida pelo quadro saxão: 7 a 2. Destaque para Heinrich Riso, que marcou três tentos. Começava a ser forjada a tradição do futebol de Leipzig.

Viktoria Trophy
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

À glória de 1903 se somariam outras duas, em 1906 e 13. O título transitaria entre várias mãos no período, sem qualquer dominância. Após o hiato entre 1915 e 19, em que o torneio permaneceu suspenso em decorrência da Primeira Guerra Mundial, o VfB perdeu força. O primeiro clube a alcançá-lo em conquistas, e ultrapassá-lo, seria o Nürnberg, já nos anos 1920. Contudo, em 1936, o Leipzig retornaria aos grandes palcos, batendo o Schalke 04 na final da Copa da Alemanha, num apinhado Estádio Olímpico de Berlim.

A Segunda Guerra eclodiria e o Leipzig voltaria a adormecer. Pior, com o fim do conflito, acabaria dissolvido a partir dos caminhos desenhados pelos Aliados, como a totalidade das agremiações locais submetidas à influência soviética.

Como se sabe, na repartição da Alemanha entre as zonas de influência britânica, estadunidense, francesa e soviética, Leipzig se submeteria aos russos; mais tarde, tornar-se-ia parte da República Democrática Alemã, com regime “comunista e de economia planificada, dando prosseguimento à socialização da indústria e ao confisco de terras e de propriedades privadas”, como registra a DW.

Os membros do clube o refundariam, ele passaria por mudanças de nome e fusões, até, em 1965, tornar-se o Lokomotive Leipzig. Trocando em miúdos, Leipzig integrava a Alemanha Oriental e, assim, disputava os campeonatos a leste do território germânico.


O título da Alemanha Oriental teimava em escapar


Não era fácil conquistar a Oberliga, instituída no final dos anos 1940. O futebol era influenciado por muitos padrinhos. Os Dínamos, de Berlim e Dresden, maiores vencedores, tinham ligação estreita com a polícia secreta, a Stasi, respondendo diretamente ao seu dirigente máximo, Erich Mielke.

Mielke acreditava piamente na importância do futebol para o fortalecimento da imagem do Estado. “O sucesso no futebol destacará ainda mais claramente a superioridade de nossa ordem socialista na área do esporte”, teria dito, como registrou o Guardian. De diversas formas, inclusive forçando atletas a trocar de clube, o regime alteraria os caminhos do futebol da RDA.

Por sua parte, o Vorwärts, outro que se banhava em glórias, ficava próximo ao Ministério da Defesa. Rumores ainda sugerem que a cidade de Karl-Marx-Stadt (desde 1990 Chemnitz) recebia aportes estatais para manter um time forte, o Wismut. Clubes sem conexões diretas com o poder precisavam nadar mais ainda contra a maré: Magdeburg e FC Carl Zeiss Jena respondem pelos casos de maior sucesso.

O Lokomotive Leipzig se posicionava em uma espécie de meio termo. Quando a Oberliga foi reestruturada, a partir de 1965, a alguns clubes foi designada a missão de formar talentos. Entre eles estava o quadro saxão. O Lokomotive passou a receber aporte da Deutsche Reichsbahn, a estatal responsável pelas ferrovias do país. Até ali, o clube havia conquistado apenas uma Copa, e não demoraria a dar novas demonstrações de força.

Leipzig Intertoto 1966
Foto: Reprodução Lokomotive Leipzig/Arte: O Futebólogo

Em 1965-66, conquistou a Copa Intertoto — que não era organizada pela UEFA. Venceu os suecos do Norrköping, na decisão. No ano seguinte, ficaria com o vice-campeonato nacional. O que se repetiria em 1985-86 e 1987-88. Definitivamente, a Oberliga representava um desafio de outro nível, pelas dificuldades impostas pelo campo e pela política: após a renovação, 17 das 26 conquistas acabariam nas mãos dos Dínamos.

“Sempre estivemos lá em cima, terminando em segundo e terceiro. Não quero nem falar mais sobre o que passou [...] O BFC era um time de classe. Mas nesses dez anos [a década de 1980] houve duas equipes que deveriam ter conquistado o título”, diria o goleiro René Müller, à revista 11Freunde. As copas eram ligeiramente mais democráticas e nelas o Lok se afirmaria.

Um time copeiro


Em 1975-76, o Leipzig venceu o Vorwärts e ficou com o título da Copa da Alemanha Oriental e a classificação para a Recopa Europeia. No ano seguinte, fracassou na competição continental, caindo na primeira fase diante dos escoceses do Hearts. Em 1980-81, a história se repetiu com novo triunfo ante o Vorwärts. Na Recopa subsequente, o time faria uma campanha melhor, batendo os romenos do Politehnica Timișoara, na fase preliminar, os galeses do Swansea na primeira, e os iugoslavos do Velez Mostar, adiante. Tudo isso para perder para o Barcelona, do craque Allan Simonsen, nas quartas de finais.


Cinco anos mais tarde, a vítima nacional do Lokomotive seria o Union Berlin, massacrado: 5 a 1. Ainda não se sabia, mas, depois de duas aparições de aquecimento, o time de Leipzig estava pronto para viver emoções mais intensas sob os olhares da Europa.

Sua estrela era um atacante de 20 anos, Olaf Marschall. Entre os garotos, havia o lateral Heiko Scholz e o zagueiro Matthias Lindner. Eles se uniam a uma série de jogadores mais experientes, com rodagem na seleção nacional, casos do meia Matthias Liebers e do zagueiro Frank Baum, medalhistas de prata nos Jogos Olímpicos de Moscou, de Uwe Zötzsche, Ronald Kreer, e do goleiro René Müller, todos com mais de 35 internacionalizações.

“Não éramos um super time, mas um grupo muito coeso. Faltava o ápice com o campeonato, mas havia outros motivos para isso [...] Nossa força era nosso caráter, nossa unidade, e é por isso que jogamos com tanto sucesso ao longo dos anos. A equipe não foi formada por estrelas, mas por bons indivíduos que trabalharam muito bem em equipe”, prosseguiria Müller.

Embora muitos andassem no clube há anos, o trabalho do treinador Hans-Ulrich Thomale, de apenas 42 anos, era recente, iniciado em 1985. Não tinha muito lastro, sem conquistas profissionais e com somente um trabalho no currículo, liderando o Wismut. Apesar disso, comandara por quase 10 anos as categorias de base do Carl Zeiss Jena, o que não era pouco e se sugeria fundamental para um clube como o Lokomotive, com vários jovens para lapidar.


A chance continental


A Alemanha Oriental tinha um historial na Recopa que não podia ser desconsiderado. Em 1973-74, depois de superar NAC Breda, Baník Ostrava, Beroe Stara Zagora e os portugueses do Sporting, o Magdeburg venceu o Milan na decisão. Em Roterdã, o time de Gianni Rivera e Karl-Heinz Schnellinger, treinado por Giovanni Trapattoni, sucumbiu: 2 a 0.

Sete anos depois, seria a vez de o Carl Zeiss acessar a decisão de forma ainda mais impressionante, tombando Roma, Valencia, o surpreendente Newport County e o tradicional Benfica. Porém, na decisão, seria superado pelos soviéticos do Dínamo Tbilisi, em Dusseldorf. Em comum, as decisões históricas tinham o fato nada prestigioso de terem sido acompanhados por pouquíssimos espectadores. 

Não eram muitas as boas histórias dos alemães orientais na competição, mas não eram tão poucas.

A corrida do Lokomotive, em 1986-87, começaria em Belfast. Sem vida fácil. Num estádio The Oval às moscas, o Glentoran forçou a mão dos alemães, garantindo um empate por 1 a 1. Mesmo a volta não seria fácil, com um triunfo por 2 a 0 sendo consumado no final da partida. A história seria similar na rodada seguinte. Foi em Viena que começou a batalha ante o Rapid. Na ida, 1 a 1. A volta também seria decidida nos finalmentes, mas da prorrogação: 2 a 1.


A única eliminatória mais tranquila seria diante do Sion, nas quartas de finais. Dessa vez, a disputa começou em Leipzig. A tranquilidade, a bem da verdade, só se viu no placar, já que no campo a única coisa que se enxergava nitidamente era o branco da neve de um dos invernos mais rigorosos da Alemanha Oriental. Contando com um desvio que encobriu o arqueiro do quadro suíço, Marschall abriu o placar. Três minutos depois, Hans Richter anotaria de cabeça. Isso tudo nos cinco minutos finais. Na volta, o zero não saiu do marcador.

Nas semifinais, o Leipzig era aguardado pelo Bordeaux, que deixara pelo caminho Benfica e Torpedo Moscou, alinhava jogadores como René Girard, Jean Tigana e José Touré, era treinado por Aimé Jacquet, e já vencera duas vezes a Ligue 1, naquela década. Seria uma eliminatória arrepiante. Na Nova-Aquitânia, um gol de Uwe Bredow foi o que separou as equipes. O Lok vencia, pela primeira vez, fora de casa. Era um momento duro na temporada, com o encontro antecipando confrontos contra os Dínamos de Berlim e Dresden.


Em casa, diante de mais de 70 mil pagantes, o Leipzig viu sua vantagem desvanecer em apenas três minutos. Zlatko Vujović marcou logo. “É claro que você sofre o baque por um momento, mas imediatamente reage. O jogo estava aberto, ia e voltava”, pontuou Muller. O encontro foi e voltou, mas as redes não voltariam a balançar no tempo normal. Nem na prorrogação. O Lokomotive treinara pênaltis antes da partida e estava preparado.

Apenas Liebers desperdiçou sua chance pelo lado alemão. Seria igualado por Philippe Vercruysse, do lado gaulês. As cobranças alternadas seriam convocadas. Depois de Tigana e Wolfgang Altmann converterem, Muller parou Vujović. E quem foi para a cobrança na sequência? Ele mesmo, o goleiro. Bola na rede e fim de papo. O Lokomotive se tornava o terceiro clube da Alemanha Oriental a alcançar a final da Recopa Europeia.


No meio do caminho tinha um gigante


No dia 13 de maio de 1987, um dos palcos esportivos mais especiais aguardava o Lokomotiv Leipzig. O Estádio Olímpico de Atenas sediaria a decisão, mas com cerca de 35 mil presentes, de um total possível de 80 mil. Havia confiança na vitória, mas era preciso reconhecer que o adversário tinha muito mais tradição, para além de alguns jogadores jovens muito especiais e um treinador que prometia se tornar referência.

O Ajax, comandado por Johan Cruyff, com Frank Rijkaard na retaguarda, Aron Winter no meio, Marco van Basten no ataque e Dennis Bergkamp no banco, trazia de volta a expectativa das glórias que notabilizaram os ajacied, na década anterior. Fazia quase 15 anos desde o último título europeu dos amsterdameses, que não facilitariam a vida do Lok. Aliás, facilidades eram tudo o que o clube não teria.

“O Ajax era uma equipe jovem e promissora, mas podíamos ganhar. No entanto, já estávamos um pouco além do ápice. Tínhamos muitos lesionados, como Hans Richter, Dieter Kühn e Hans-Jörg Leitzke, e não conseguimos deixar os jogadores realmente em forma. Por isso tivemos que improvisar na final”, recordaria Muller.

Lok Leipzig Ajax 1987
Foto: Reprodução Lokomotive Leipzig/Arte: O Futebólogo

O sonho durou 20 minutos. Rijkaard já tinha chutado perigosamente de média distância, embora o goleiro Stanley Menzo também tivesse sido exigido pelos alemães. Então, Sonny Silooy foi à linha de fundo e deixou Van Basten completamente à vontade. De cabeça, o goleador marcou o gol da final. Os holandeses seguiriam tendo mais iniciativa e oportunidades de gol, mas o marcador não voltaria a ser modificado. Como o Carl Zeiss Jena, o Lokomotive Leipzig era vice-campeão continental.

Apesar disso, o ano ainda teria festejos, com o clube renovando a conquista da Copa nacional. Contudo, na volta à Recopa, o clube teria um adversário muito forte já no início. Com um placar agregado mínimo, 1 a 0, o Marseille avançaria, com gol de um alemão ocidental, Klaus Allofs.

A Oberliga seria disputada até 1990-91. Com a reunificação das Alemanhas, os times do leste seriam incorporados ao sistema da Bundesliga. O Lok teria de se acostumar a uma nova realidade, começando na segunda divisão, contra adversários muito mais ricos. A única aparição na elite aconteceria em 1993-94, outra vez sob o nome VfB Leipzig. 10 anos depois, faliria e recomeçaria, muito distante dos resultados do início da sua história e do período em que fez parte da Alemanha Oriental, mas outra vez como Lokomotive.

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