O fim do jejum do Racing Club em 2001

No dia 4 de novembro de 1967, o torcedor do Racing Club de Avellaneda foi ao céu. Depois de duas batalhas renhidas com o Celtic de Jock Stein, uma na Argentina e a outra na Escócia, as equipes subiram ao gramado do mítico estádio Centenário, em Montevidéu. No desempate, prevaleceram os portenhos, treinados pelo ícone Juan José Pizzuti. Naquele ano, um jovem Reinaldo Merlo ainda sonhava com uma vida no futebol. Tinha 17 anos e sequer era profissional do River Plate. Já o nascimento de Diego Milito nem era projetado. Faltavam três décadas para o encontro e o contexto não era fácil.

Racing 2001 Gabriel Loeschbor
Foto: Racing Club/Arte: O Futebólogo

Pausa para o sofrimento


Depois do título mundial, o cenário era propício para o crescimento do Racing. Mas não aconteceu. El Equipo de José não teve continuidade. O clube foi um dos primeiros subjugados pelo Estudiantes, treinado por Osvaldo Zubeldía. Nas semifinais da Copa Libertadores de 1968, o futebol de resultados dos homens de La Plata se impôs ao jogo técnico dos representantes de Avellaneda. Embora seguisse tendo boas campanhas, aquele Racing não voltou aos pódios.

“Acredito que nosso time revolucionou o futebol argentino. 24 horas antes de um jogo como visitante, não havia mais ingressos. Todo mundo queria nos vencer. A equipe estava bem estruturada defensivamente; todos defendiam e atacavam. Qualquer um poderia marcar um gol. Mesmo que eu não tenha marcado nenhum, tentei garantir que os atacantes fizessem”, comentou o capitão Oscar Martín, à ESPN Deportes.

Aos poucos, La Academia foi se esfacelando. Ainda em 1969, Pizzuti assumiu o comando da seleção argentina. Pouco depois, Norberto Raffo seguiu para o Atlanta; Agustín Cejas fechou com o Santos e Roberto Perfumo com o Cruzeiro; Alfio Basile e Nelson Chabay rumaram ao Huracán; Juan Carlos Cárdenas ao Puebla; enquanto Martín, João Cardoso, Juan Carlos Rulli e Humberto Maschio se aposentaram.

Racing Club 1967
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

Ainda era o início dos anos 1970 e o time que salvara o Racing do ostracismo estava desfeito. “Em 1964, jogamos um jogo por um ‘asado’. Alguns não gostam de falar disso, mas não minto”, confirmou Martín. A realidade de outrora não seria tão diferente da vindoura.

Exceto pelo vice-campeonato do Metropolitano de 1972, o alviceleste foi se acostumando com posições intermediárias na tabela de classificação. E não é que tenha surgido uma nova equipe hegemônica. Na década, o título pulou de mão em mão — Independiente, Boca Juniors, Rosario Central, San Lorenzo, Huracán, Newell’s Old Boys, River Plate e Quilmes foram todos campeões.

Em 1976, o clube chegou a disputar um mini torneio de permanência na elite. Foi salvo por apenas um ponto, vendo o modesto San Telmo cair.

O Racing até emplacou as presenças do defensor Carlos Squeo no elenco argentino que disputou a Copa do Mundo de 1974, e de Ricky Villa, no certame seguinte, vencido pelos Hermanos. Era, contudo, inevitável concluir que nada fora construído sob as bases do trabalho d’El Equipo de José. O sucesso era coisa de um passado que se tornava cada vez mais distante e sofrido, especialmente diante do sucesso de seus grandes rivais, notadamente do mais odiado, o Independiente.


Depois da noite escura, o breve renascimento


A queda para a segunda divisão, em 1983, não foi surpresa para ninguém. Mesmo que tivesse voltado ao comando de Pizzuti, o Racing foi cavando sua cova aos poucos, mas consistentemente. O rebaixamento com base no promedio, instituído naquele ano, não deixou margem para nenhuma dúvida a esse respeito. O time não vinha fazendo jus à própria grandeza há mais de 10 anos. 

Em 1984, o Racing até chegou à final da Primera B. Porém, em dois jogos, pereceu diante do Gimnasia y Esgrima e foi obrigado a continuar vivendo seu inferno particular. A situação só começou a melhorar com o retorno de um velho conhecido. Em 85, Basile voltou como treinador.

Enfim, o clube conseguiu colocar a cabeça para fora do atoleiro e respirar um pouco de ar puro. Ainda assim, foi com mais sorte do que juízo, porque nas quartas de finais, La Academia ficou no 4 a 4 com o Banfield, no agregado, e só prosseguiu por deter melhor campanha na fase inicial. Depois, passou com tranquilidade por Quilmes e Atlanta.

Aquele time não tinha nada de muito especial em termos técnicos, mas voltou a mostrar brio. Ninguém encarnou isso melhor do que o zagueiro Gustavo Costas, um dos nomes mais importantes da história do clube, um protagonista de uma escrita digna de filme.

Alfio Basile Racing 1985
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

“Depois de conquistarmos o acesso, passamos seis meses sem jogar e também não recebemos o prêmio por vencer o octogonal. Alguns rapazes pensaram em enviar um telegrama, até perceberem que não adiantaria. O Racing era como uma fábrica prestes a fechar, e era preciso dar o nosso máximo para mantê-la funcionando. E assim, na adversidade, o grupo se formou”, contou à revista El Gráfico, em 1987. “Fomos jogar o campeonato mendocino. Era a única maneira de recebermos. Viajávamos todas as semanas em um ônibus que parava a cada hora porque o motor superaquecia”.

A partir desse tipo de dificuldade, foi se formando um grupo que tinha fome e, acima de tudo, amava o Racing. Na volta à elite, o alviceleste chegou logo às quartas de finais, e continuou reescrevendo sua história. Basile seguia na casamata, comprometido com a ressurreição do time da sua vida. A sorte começava a sorrir outra vez para o clube, que conseguiu contratar um craque, Rubén Paz, que estava infeliz em outro Racing, o de Paris.

“Me receberam como se eu estivesse no clube há anos. Há um grupo fantástico, muito humilde, e também a comissão técnica. Isso é o que mais me impressionou até agora. E depois, tem essas coisas que só acontecem na Argentina e no Uruguai. Você chega ao treino e o mate está pronto, começam as brincadeiras, as piadas, você se troca com vontade, trabalha com prazer”, relatou à El Gráfico.

O uruguaio ajudou o time a ficar em terceiro no Campeonato Argentino de 1987-88, vencido pelo Newell's. Ainda naquele ano, o jejum de taças acabou. No que foi a primeira disputa da Supercopa Sul-Americana, um torneio que colocou em choque todos os campeões da Libertadores, La Academia superou Santos e River Plate, antes de encontrar o Cruzeiro na decisão.

Capitaneado por Ubaldo Fillol, com Costas e Néstor Fabbri na defesa, Miguel Colombatti no meio-campo e Paz com liberdade criativa, venceu na ida, 2 a 1. No Mineirão, o empate por 1 a 1 foi suficiente. Rubén Paz foi eleito Rey de América no ano. Faltava voltar a vencer dentro de casa.


A torcida e a base impulsionam o Racing


Basile se foi em 1989 e o futuro promissor escorreu pelos dedos. O cenário do início dos anos 1970 pareceu se repetir. Paz saiu brevemente para o Genoa, mas voltou e ficou até 1993. Costas imigrou à Suíça, para representar o Locarno, voltando em 1992 e permanecendo até 96. Fabbri seguiu para o América de Cali. Fillol terminou a carreira no Vélez Sarsfield. O time foi se perdendo. Naturalmente, os resultados foram decaindo e o promedio também.

Houve, sim, dias mais alegres como durante o Apertura de 1995, quando o time foi vice-campeão. Foram exceção, porém. Em 1998, o Racing estava à beira da falência

Durante a gestão do presidente Daniel Lalín, com o time preso numa areia movediça de dívidas, pleiteou a recuperação judicial, ficou sob administração e só conseguiu quitar os débitos a partir de vendas que não foram bem vistas pelo torcedor, como as de Marcelo Delgado, para o Boca Juniors, e de Albano Bizzarri ao Real Madrid.

Foi um período complicado, o presidente chegou a ser agredido fisicamente e ficou eternizado como um dos mais detestados pela torcida. Seja como for, o Racing sobreviveu ao período de administração e recomeçou com a ajuda de seus torcedores. Em 1999, um grupo de hinchas promoveu reformas em um terreno cedido pelo governo ao clube, o qual passou a ser utilizado como centro de treinamento para as categorias de base. O local foi inaugurado em 9 de julho de 2000. Surgia o Predio Tita Mattiussi.

Diego Milito Racing
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

O local seria fundamental para o futuro da equipe, que revelou gente como Gabriel Mercado, Maxi Moralez, Mariano González, Lisandro López, Sergio Romero, Rodrigo De Paul e, mais recentemente, Lautaro Martínez e Matías Zaracho. 

“Se não fosse por aqueles dez loucos visionários, hoje não teríamos o patrimônio mais importante com o qual o clube conta”, falou Diego Milito, à ESPN Deportes.

Promovido em 1999, Milito não usufruiu das instalações, mas viu tudo acontecer de perto. Não só ele, mas também os meio-campistas Adrián Bastía, Javier Lux, Gustavo Arce, além do atacante Maxi Estévez. Todos revelados no clube. Eles se juntaram a referências veteranas como a do lateral e capitão Claudio Úbeda e do zagueiro Sergio Zanetti, irmão de Javier, que viveram todo aquele processo. Formaram um time que tinha ganas de vencer.

Chega de sofrer


Ao final daquele processo traumático, em que chegou a ser divulgado que o Racing deixara de existir, a equipe foi orientada por Costas em parceria com Maschio. Outro ídolo, Alberto Jorge, também tentou sua sorte. O clube foi o último colocado no Apertura de 2000, mas conseguiu o quinto lugar do Clausura 2001 e se salvou por pouco do descenso, já com Oscar López na casamata. 

Para exorcizar os maus espíritos que pairavam pelo Racing, foi preciso ir mais uma vez atrás de Basile — não exatamente.

Reinaldo Merlo é figura associada ao River Plate, mas foi um dos auxiliares de Alfio Basile, quando este comandou a seleção argentina, no início dos anos 1990. Bebera da fonte que rendera as últimas conquistas de La Academia e foi o escolhido para treinar o time no Apertura 2001. Naquele ano, o jejum de títulos nacionais completava 35 anos — um completo absurdo, para quem foi o maior vencedor do país até 1964 e, entre argentinos, o primeiro campeão Mundial.

Porém, o time não tinha estrelas. Entre os revelados naquela última fornada do clube, só Milito alcançaria o ápice. Quanto aos contratados, os mais relevantes foram o goleiro Gustavo Campagnuolo, o lateral colombiano Gerardo Bedoya, o zagueiro Gabriel Loeschbor e Gustavo Barros Schelotto, mais lembrado como o irmão de Guillermo, notoriamente superior tecnicamente. Seja como for, Merlo determinou que o time deveria ir Paso a Paso.

Gustavo Barros Schelotto Racing
Foto: Desconhecido/Arte: O Futebólogo

“Eu estava no Villarreal da Espanha, sem muita continuidade. Mostaza Merlo me ligou e me disse diretamente: 'Quer vir e ser campeão com o Racing?’”, contou Schelotto ao Olé.

Merlo não montou uma máquina de destruição em massa, mas encaixou as engrenagens e o time funcionou. Eram 19 jogos, um contra cada adversário. 

Sob chuva inclemente, o Racing estreou vencendo o Argentinos Juniors, 2 a 1. Só foi perder na longínqua 15ª rodada e o 3 a 1 favorável ao Boca Juniors foi a única derrota da equipe. Econômica, teve nos 4 a 1 diante de San Lorenzo e Gimnasia seus resultados mais expressivos. Corajosa, mostrou o poder de seu espírito no movimentado empate com o Nueva Chicago, 4 a 4. Caseira, só deixou a vitória escapar no Cilindro em dois empates, diante de Belgrano e River Plate.

“Não havia uma figura dominante; todos trabalhávamos lado a lado e nos impulsionávamos uns aos outros. Não fomos brilhantes em termos de exibições, mas fizemos grandes jogos”, acrescentou Gustavo.

O Racing acumulou 12 vitórias. Teve a segunda melhor defesa do campeonato, sofrendo somente 17 gols. Comandado pela técnica de Esteban Cambiasso, Andrés D’Alessandro e Ariel Ortega, sob a direção de Ramón Díaz, o River se colocou em condição de favoritismo, mas não foi páreo.

No dia 27 de dezembro de 2001, o Racing voltou ao céu. Bastava empatar com o Vélez Sarsfield no José Amalfitani lotado (a exemplo do Cilindro). Foi o que aconteceu: 1 a 1. Loeschbor foi o nome do gol de La Academia. Não era o melhor dos momentos para celebrar, considerando a enorme crise político-econômica vivida por um país em recessão, mas quem havia de frear os ânimos daqueles que aguardaram 35 anos para gritar “é campeão!”, bem no centro de Buenos Aires?

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